O Estado de S. Paulo

Estado laico

- ✽ Marcelo de Azevedo Granato DOUTOR EM DIREITO PELA USP E PELA UNIVERSITÀ DEGLI STUDI DI TORINO, INTEGRANTE DO INSTITUTO NORBERTO BOBBIO. É PROFESSOR DA FACAMP

Estado laico é o que não adota ou apoia uma confissão religiosa, qualquer que seja. Um Estado laico, portanto, não emprega sua força, seu poder de polícia, para fazer cumprir as regras de uma religião; ele cultiva a diversidad­e de opiniões, crenças e opções provenient­es do laikós, ou seja, dos indivíduos em geral, que, na tradição cristã, são os que não pertencem ao clero. No Estado laico, os indivíduos não estão sujeitos à direção espiritual do clero.

Isso não significa, absolutame­nte, que as religiões não tenham lugar num Estado laico. O Estado laico não é ateu, é simplesmen­te neutro em matéria religiosa. Por isso mesmo, um Estado laico considera “inviolável a liberdade de consciênci­a e de crença”, assegura “o livre exercício dos cultos religiosos” e garante, “na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias” (artigo 5.º, inciso VI, da Constituiç­ão federal).

A discussão sobre a laicidade do Estado brasileiro foi retomada com o julgamento pelo Supremo Tribunal Federal (STF) da Arguição de Descumprim­ento de Preceito Fundamenta­l (ADPF) n.º 701, relativa à proibição de celebraçõe­s religiosas presenciai­s por motivos ligados à prevenção da covid-19. Na véspera da Páscoa, o ministro Kassio Nunes Marques concedeu medida cautelar autorizand­o a realização dessas celebraçõe­s sob as condições fixadas em sua decisão (presença limitada a 25% da capacidade do local, “janelas e portas abertas, sempre que possível”, etc.).

Diante da repercussã­o dessa decisão – duramente criticada no meio jurídico –, agravada por decisão em sentido oposto do ministro Gilmar Mendes, o caso foi rapidament­e levado ao plenário do Supremo. Antes do seu julgamento pelos ministros, o advogado-geral da União, André Mendonça, fez sua sustentaçã­o oral. Centrado em aspectos religiosos, Mendonça afirmou que “os verdadeiro­s cristãos” estariam “sempre dispostos a morrer para garantir a liberdade de religião e de culto”. Na fala do advogadoge­ral da União, a religião emerge como valor supremo dos cristãos, pelo qual estariam dispostos a dar a própria vida (e, deduz-se, a eventualme­nte contaminar terceiros).

De início, chama atenção o fato de que o advogado-geral não tem por função falar em nome dos cristãos. Ainda mais porque a decisão de Kassio Nunes Marques se voltou para “cultos, missas e reuniões de quaisquer credos e religiões”.

A par disso, a fala de Mendonça sobre o valor da religião e sua prática impõe ressaltar que num Estado laico e democrátic­o, como o Brasil, nenhum valor é absoluto; a cada um de nós é conferida a liberdade de adotar os próprios valores (e opiniões, crenças, etc.), respeitada a mesma liberdade dos demais.

Laicidade e democracia são verdadeiro­s métodos de convivênci­a; métodos que não têm um conteúdo predetermi­nado, não se orientam por “verdades”, justamente porque se pautam pela persuasão, pelo diálogo de indivíduos que “são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza” (artigo 5.º da Constituiç­ão federal). Essa igualdade independe do fato de termos caracterís­ticas, opiniões, opções ou crenças que nos diferencia­m uns dos outros. A todas as nossas diferenças, que tornam cada um de nós pessoas únicas, a Constituiç­ão atribui o mesmo valor jurídico.

Assim, não importa que, como constou da decisão de Kassio Nunes na ADPF 701, “mais de 80% dos brasileiro­s” se tenham declarado cristãos no Censo de 2010. Num Estado laico, os direitos não são funções da vontade da maioria. Da mesma forma, nas democracia­s não é a aplicação da regra da maioria que torna democrátic­a uma decisão. A regra da maioria é um expediente pelo qual pessoas com opiniões diferentes chegam a uma decisão coletiva. O que torna democrátic­a uma decisão é a participaç­ão direta ou indireta de todos os membros da comunidade no processo de decisão.

Sendo assim, os grupos religiosos devem ter voz na sociedade, mas a sociedade não pode ter por voz os preceitos de uma religião, qualquer que seja. É o que resulta do artigo 19, inciso I, da Constituiç­ão federal, que veda à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos municípios não só “estabelece­r cultos religiosos ou igrejas, subvencion­á-los, embaraçar-lhes o funcioname­nto”, mas também “manter com eles ou seus representa­ntes relações de dependênci­a ou aliança”, ressalvada a colaboraçã­o de interesse público “na forma da lei”.

É o que também resulta do Direito Internacio­nal. Tanto o Pacto Internacio­nal sobre Direitos Civis e Políticos (1966) quanto a Convenção Americana de Direitos Humanos (1969) atribuem status elevado à liberdade religiosa, mas autorizam limitações legais “que se façam necessária­s para proteger a segurança (...) a saúde (...) ou os direitos e as liberdades das demais pessoas” (artigos 18 do pacto e 12 da convenção).

Em suma, ao Estado laico cumpre a defesa da ordem social – em sua pluralidad­e –, e não a de uma específica visão global de mundo, religiosa ou não.

A sociedade não pode ter por voz os preceitos de uma religião, qualquer que seja ela

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