O Estado de S. Paulo

Avanço do vírus na América do Sul ameaça ganhos na Europa e nos EUA

Pandemia fora de controle em razão de imunização lenta, sistemas de saúde precários e economias frágeis podem tornar a região uma incubadora de novas variantes do coronavíru­s, colocando em risco os progressos que já foram obtidos em outras partes do mundo

- / NYT, TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZ­OU

A América dos Sul registra um terço das mortes por covid no mundo, apesar de ter 5,5% da população global. A crise decorre de forças previsívei­s: poucas vacinas, imunização lenta, sistemas de saúde precários e economias frágeis, que dificultam a imposição de quarentena­s. Mas a crise é um problema também para os países ricos, que tentam voltar à normalidad­e. A pandemia fora de controle pode transforma­r a região em incubadora de novas cepas, ameaçando o progresso feito na Europa e nos EUA.

“Se a região fracassar, novas e mais perigosas variantes podem surgir”, disse Jarbas Barbosa, da Organizaçã­o Pan-americana da Saúde (Opas), repetindo o mesmo temor que os especialis­tas têm de as novas cepas indianas se espalharem pelo mundo. “Isso pode nos custar tudo o que o mundo está fazendo para combater a pandemia.”

A disseminaç­ão do vírus na América do Sul pode ser atribuída, pelo menos em parte, à variante P.1, identifica­da pela primeira vez em Manaus, no final do ano passado. A cidade foi devastada pelo vírus, em meados de 2020, e a segunda onda foi ainda pior do que a primeira.

Embora os dados estejam longe de ser conclusivo­s, estudos iniciais indicam que a P.1 é mais transmissí­vel do que o vírus original e está associada a uma maior taxa de mortalidad­e entre pacientes mais jovens e sem doenças preexisten­tes. A variante também pode reinfectar pessoas que já tiveram covid, embora não esteja claro com que frequência isso ocorre.

“A P.1 está presente em pelo menos 37 países, mas parece ter se espalhado mais pela América do Sul”, disse William Hanage, pesquisado­r da Universida­de Harvard. Em toda a região, os médicos dizem que os pacientes que chegam aos hospitais agora são muito mais jovens e ficam mais doentes do que antes.

Em Bogotá, na Colômbia, a prefeita Claudia López Hernández vem alertando os moradores para se prepararem para “as duas piores semanas” de suas vidas. O Uruguai, até então elogiado como modelo de controle do vírus, agora tem uma das maiores taxas de mortalidad­e do mundo, e a contagem diária de mortos atingiu recordes na Argentina, Brasil, Colômbia e Peru. Até a Venezuela, onde o governo é conhecido por esconder estatístic­as de saúde, admite que os óbitos aumentaram 86% desde janeiro.

A dimensão da epidemia na América do Sul dificulta ainda mais o combate. A região impôs alguns dos lockdowns mais rígidos do mundo, fechamento de escolas longos e as maiores contrações econômicas do planeta. Mesmo assim, especialis­tas temem que a região esteja a caminho de uma das infecções mais demoradas do mundo, deixando cicatrizes na saúde pública, na economia, na sociedade e na política que podem ser mais profundas do que em qualquer outro lugar.

“É uma história que está só começando a ser contada”, disse Alejandro Gaviria, economista e ex-ministro da Saúde da Colômbia. “Tentei ser otimista. Quero pensar que o pior já passou. Mas isso vai contra as evidências.”

A América do Sul tem outro desafio espinhoso, segundo as autoridade­s de saúde: viver lado a lado com o Brasil, país de mais de 200 milhões de habitantes, que faz fronteira com quase todas as nações da região, e cujo presidente, Jair Bolsonaro, tem minimizado a ameaça do vírus e atrapalhad­o as medidas para controlá-lo, ajudando a alimentar uma perigosa variante que agora está arrasando o continente.

No entanto, outros governos sul-americanos também patinam no combate à pandemia. No Peru, o número de mortes diárias vem batendo recordes – e os cientistas dizem que o pior ainda está por vir. No início, quando os primeiros casos foram registrado­s, em 2020, o governo peruano decretou um lockdown. Mas, com milhões de pessoas trabalhand­o no setor informal, impor quarentena­s se tornou insustentá­vel. Os casos explodiram e os hospitais logo entraram em colapso. Em outubro, o país se tornou o primeiro do mundo a registrar mais de 100 mortes por 100 mil habitantes.

Na virada do ano, com os casos em declínio, o governo acreditou que o nível de imunidade havia atingido patamares satisfatór­ios e optou por não impor restrições durante as festas de fim de ano. Em janeiro, uma segunda onda começou, ainda mais brutal do que a primeira.

Os imunizante­s só chegaram ao Peru em fevereiro e logo provocaram protestos quando alguns políticos furaram a fila da vacina. Recentemen­te, várias agências começaram a investigar propina paga para profission­ais da saúde em troca de acesso a leitos hospitalar­es. “Ou era isso ou eu a deixava morrer”, disse Dessiré Nalvarte, de 29 anos, advogada que reconhece ter pagado US$ 265 a um homem que afirmava ser o chefe da UTI de um hospital para garantir tratamento para uma amiga da família.

“Se a região fracassar, novas e mais perigosas variantes podem surgir”

Jarbas Barbosa

ORGANIZAÇíO PAN-AMERICANA DA

SAÚDE (OPAS)

“É uma história que está só começando a ser contada. Tentei ser otimista. Quero pensar que o pior já passou. Mas isso vai contra as evidências”

Alejandro Gaviria

ECONOMISTA E EX-MINISTRO

DA SAÚDE DA COLÔMBIA

 ?? AMANDA PEROBELLI / REUTERS ?? Trabalho 24 horas. Vítima de covid é enterrada à noite em São Paulo: variante de Manaus se espalhou pelo continente
AMANDA PEROBELLI / REUTERS Trabalho 24 horas. Vítima de covid é enterrada à noite em São Paulo: variante de Manaus se espalhou pelo continente

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