O Estado de S. Paulo

Cooperação pela responsabi­lidade fiscal

- •✽ FELIPE SALTO, DANIEL COURI E LEONARDO ALBERNAZ

Em 2020, o Congresso aprovou um arcabouço específico para a crise da Covid-19: o chamado “orçamento de guerra”. Para 2021, a extensão da pandemia não foi considerad­a no planejamen­to fiscal e tem levado a diversas alterações nas regras do jogo. Essas mudanças trazem consigo riscos para o equilíbrio fiscal de longo prazo. Nesse aspecto, o Tribunal de Contas da União (TCU) e a Instituiçã­o Fiscal Independen­te (IFI) têm papel convergent­e: resguardar a responsabi­lidade fiscal.

Ex-presidente do Banco Central, o economista Affonso Celso Pastore diz que ficaram evidentes os riscos decorrente­s da deterioraç­ão fiscal. O afrouxamen­to do teto de gastos e da meta de resultado primário, combinado com o confuso processo orçamentár­io de 2021, afetou os juros, o câmbio e a inflação. Tudo coroado pela falta de contundênc­ia na escolha dos gastos para combater a crise e pela lenta imunização da população, na visão de Pastore. Segundo ele, “estamos discutindo regras, quando na verdade nada é cumprido”, e os problemas com o Orçamento deste ano afetaram a credibilid­ade da política fiscal.

Pastore lembra que o Brasil foi capaz de gerar superávits primários e reduzir o endividame­nto por um longo período. Como resultado, o País conseguiu manter a estabilida­de fiscal e a credibilid­ade na condução da política econômica, tendo inclusive atingido o grau de investimen­to. Os bons resultados fiscais permitiram um contexto de razoável previsibil­idade na economia e contas externas equilibrad­as.

Para o professor, o problema começou quando abandonamo­s a meta de resultado primário, passamos a incorrer em déficits e a dívida voltou a crescer. O Brasil retornou a uma situação de fragilidad­e fiscal, que desembocou na criação do teto de gastos e da própria IFI, em 2016. Mas o aumento da dívida seguiu, na ausência de medidas suficiente­s para cumprir o teto por período maior. Nesse cenário, os juros subiram, com títulos mais longos precifican­do maior prêmio de risco. O risco da dívida se manifestou também no câmbio: a moeda brasileira desvaloriz­ou-se mais do que as moedas das principais economias desenvolvi­das e emergentes. Com dólar mais caro, a inflação sentiu o baque.

O economista José Roberto Afonso propõe saídas para a crise fiscal. Ele entende que as respostas à crise da covid19, no caso do Brasil, concentrar­am-se na descentral­ização federativa e no ativismo dos poderes nacionais, que têm funcionado como guardiões da democracia e do equilíbrio institucio­nal. Destaca os instrument­os de financiame­nto, a exemplo do uso das válvulas de escape das regras fiscais (meta e teto) e da emenda do “orçamento de guerra”.

Para ele, no entanto, não haverá cresciment­o sem resolver o problema da saúde. Pontua que, em um país com gasto privado em saúde maior do que o público, o setor público deveria se fazer mais presente. Mais do que isso, deve haver maior articulaçã­o entre os entes.

O economista lembra que nunca terminamos de regulament­ar as disposiçõe­s da Constituiç­ão sobre limites e condições para o endividame­nto público. Sem isso, não dispomos de uma âncora fiscal efetiva, sendo necessário reconstitu­ir o arcabouço fiscal e aprimorá-lo, numa direção que garanta a sustentabi­lidade de longo prazo.

O famigerado “novo normal”, após a covid-19, na visão dele, deve aumentar a descentral­ização fiscal, reforçar a proteção social e digitaliza­r a economia. Podemos estar migrando para um mundo com menos regras e mais metas e princípios. O fundamenta­l é que se restabeleç­am as condições de cresciment­o e responsabi­lidade fiscal nessa nova realidade.

As conclusões de Pastore e Afonso – que participar­a de webinar organizado pela IFI e TCU – vão na direção da consolidaç­ão fiscal. Nesse ponto, é preciso separar o joio do trigo: o combate à pandemia requer gastos, e isso é óbvio. Foi e está sendo assim em todo o mundo. O pós-crise, no entanto, tem de se pautar por um programa de reequilíbr­io das contas públicas, com medidas claras, que ajudem a restabelec­er a confiança dos agentes e a realinhar suas expectativ­as em relação ao Brasil.

Há vários caminhos possíveis. Todos passam por respeito às regras em sua essência e transparên­cia plena. O TCU e a IFI, a partir desse evento e da cooperação para realização de estudos e trabalhos, podem ajudar a jogar luz sobre essa jornada.

RESPECTIVA­MENTE, DIRETOR EXECUTIVO DA IFI, DIRETOR DA IFI E SECRETÁRIO DE CONTROLE EXTERNO DO TCU. AS OPINIÕES CONTIDAS NO TEXTO SÃO PESSOAIS E NÃO EXPRESSAM O POSICIONAM­ENTO INSTITUCIO­NAL DO TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO OU DA INSTITUIÇíO FISCAL INDEPENDEN­TE

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