O Estado de S. Paulo

No filme, faz jornada particular

Novo longa de Karim Aïnouz, ‘O Marinheiro das Montanhas’ é um resgate da história de amor entre seu pai argelino e sua mãe brasileira nos tempos em que viveram nos EUA

- Rodrigo Fonseca ESPECIAL PARA O ESTADÃO

Desde Madame Satã (2002), as travessias de Karim Aïnouz pelas narrativas cinematogr­áficas se pautam por histórias sobre afirmação de território­s. Em quase 20 anos, ele demarcou chão paras identidade­s sexuais (Praia do Futuro), para maternidad­e (O Céu de Suely), para zonas politicame­nte francas (Aeroporto Central), para o respeito próprio (Abismo Prateado) ou para o amor fraterno, tema do aclamado A Vida Invisível, que lhe deu o Prix Un Certain Regard em Cannes, em 2019. Mas o novo gesto de reconhecim­ento territoria­l do cineasta cearense de 55 anos agora passa pela História, em especial a da Argélia, para fazer uma espécie de inventário afetivo (de cicatrizes e de suspiros) de sua própria vida: o longa-metragem O Marinheiro das Montanhas. “Meu coração está nisso, nessa espécie de ‘memoir’ de mim mesmo”, diz o diretor ao Estadão, ao detalhar um filme que descreve como sendo “uma viagem de reconhecim­ento de dois países”, ao documentar a relação de amor entre seus pais: a brasileira Iracema e Majid, um argelino.

Eles se conheceram nos EUA. Lá, viveram uma love story parecida com as paixões de melodrama filmadas por Karim. Foram felizes até que Majid voltou para o seu país, em 1965. Karim cresceu sem ele e só foi conhecê-lo quando já tinha 20 anos. Iracema nunca mais se casou. Mas, da memória do que foi vivido, ficou uma caixa de slides. E, agora, um longa-metragem vai nascer dessa caixa. E de uma jornada que, segundo Karim, vem deixando-o “mais educado sobre o que se passa no mundo, lá fora”.

“Peguei um barco em Marselha e fui parar na Argélia, no vilarejo de onde meu pai vem, que é uma região montanhosa, onde neva. Minha mãe morreu em 2015, mas ela está comigo nessa jornada como uma espécie de companheir­a imaginária. E fui filmando no trajeto, construind­o um filme de forma artesanal, que venho editando e espero terminar de montar até julho ou agosto. É uma espécie de Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo na Argélia”, diz o cineasta, referindo-se ao longa feito em codireção com Marcelo Gomes que deu a eles o troféu Redentor de melhor direção no Festival do Rio 2009, narrando o périplo pelo Nordeste de um geólogo de quem só se ouve a voz. “Tenho a sensação de que meus filmes são muito coloridos porque as fotos que tenho dos meus pais são retratos em cor. Há uma ausência ali que é cheia de cores. Não apareço nessas fotos porque eu ainda não existia. Minha mãe voltou para o Brasil grávida e eu cresci sendo criado pela minha avó e por ela, que foi uma mulher incrível, com uma história parecida com a da Guida de A Vida Invisível. Guida também volta grávida.”

Nas recordaçõe­s de Iracema e Majid, Karim encontrou slides deles no Colorado, antes de o pai partir. O título do filme, outrora chamado Argelino por Acaso, virou O Marinheiro das Montanhas por unir os extremos do casal: mar e rocha. “Minha mãe estudava algas. E meu pai vem das montanhas. Ele voltou para a Argélia quando o país dele alcançou a independên­cia. Eles passaram por uma luta árdua para se libertarem da França. Milhares de pessoas morreram, mas eles conseguira­m autonomia política. Entre 1962 e 1974, aquela nação foi uma espécie de Cuba da África. Até os Black Panthers foram morar lá”, diz Karim, que também retratou a realidade argelina em Nardjes A., exibido no Festival de Berlim de 2020.

Nele, ao cruzar seu olhar com uma jovem ativista inflamada, e mm ei oà Revolução dos Sorrisos, na Argélia, em 2019, o diretor aplica um de seus filtros autorais: a atenção ao transborda­mento de que mé visto como desviante em relação às regras e à moral de sua sociedade. Nardjeséu ma ferida viva a céu aberton om oralismo da tradição de sua pátria. “Ela é uma mulher sábia. Só pelos cabelos enormes que tinha, você vê um contraste com aquele mundo conservado­r, de onde meu pai vem. Depois que saí de A Vida Invisível, um filme bonito, mas centrado no sufocament­o de um ambiente tóxico, eu precisava falar de alegria. E foi aí que essa mulher, a Nardjes, com um projeto utópico forte, apareceu para mim”, disse o cineasta, na Berlinale. “Ainda neste ano, já já, a gente lança esse documentár­io no Brasil.”

Coma cabeça imersa em seu histórico familiar, Karim passou em revista as vivências (de absoluto sucesso) contabiliz­adas na década passada ao ser convida dopara amostra Cinema Brasileiro: Anos 2010,10 Olhares. A retrospect­iva, que foi inaugurada no www.10olh ares. come esteve em cartaz (online) na plataforma digital Belas Artes à La Carte, foi arquitetad­a pelo diretor e curador Eduardo Valente, num bate-bola com dez profission­ais da crítica e da teoria cinematogr­áfica, para exibir Praia do Futuro.

A história de amor entre um guarda-vidas brasileiro (Wagner Moura) e um turista alemão (Clemens Schick) rendeu ao diretor uma indicação para o Urso de Ouro. Foi uma de suas consagraçõ­es numa década em que foi jurado em Cannes (em 2012); dividiu a direção de um longa em episódios (o documentár­io Catedrais da Cultura) com Wim Wenders e Robert Redford; e ainda dirigiu Fernanda Montenegro num filme (o onipresent­e A Vida Invisível, já exibido no Festival de Moscou) que lhe consagrou aos olhos de Cannes, rendendo-lhe loas da crítica americana.

“Os anos 2010 foram especiais não só para mim como para o cinema brasileiro como um todo, porque foi quando agente pôde exercer o nosso trabalho como um ofício e não como uma aventura, pois existiam leis,ha vi afomento. Agente sab iaque poderia filmar, porque existiam políticas públicas. Nos anos 2000, agente nunca sabia se haveria dinheiro. Nos anos 2010, havia uma estrutura que, infelizmen­te, vem sendo desmontada”, diz o diretor, que tempe la frente um compromiss­o coma ficção, num projeto ligado aos irmãos Gullanech amado Neon Ri ver, que compara a saga do casal fora da lei Bonnie & Clyde, ao narrara fuga de uma jovem nipo-brasileira e de um rapaz franco-argelino, enamorados e em perigo. “Vejo hoje que A Vida Invisível conquistou muita coisa não apenas por suas qualidades, mas pelo resultado de um trabalho de todo um país, feito ao longo da década passada, para poder construir um projeto de cinema. Daí uma década tão diversa.”

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MPM FILM ‘Nardjes’. Filme sobre a realidade argelina foi exibido durante o Festival de Berlim do ano passado
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Aïnouz. Filmou sua viagem de Marselha, na França, até o vilarejo do seu pai, nas montanhas da Argélia

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