O Estado de S. Paulo

OS PREDADORES DA ELITE

A peça ‘Peixe Fora D’água’, escrita e dirigida por Marcello Airoldi, cria uma sátira política sobre a pandemia

- Dirceu Alves Jr. ESPECIAL PARA O ESTADÃO

Um homem se vê diante do último tubo de oxigênio e de um copo de água depois de 901 dias de confinamen­to. Ele foi um dos poucos heterossex­uais, brancos e muito ricos escolhidos a dedo para se proteger do coronavíru­s em um bunker de segurança máxima. Como o derradeiro sobreviven­te, o protagonis­ta de Peixe Fora D’água, interpreta­do pelo ator Giovani Tozi, aproveita o ar que ainda lhe resta para gravar um vídeo sobre sua predatória experiênci­a e deixar algum legado para a humanidade.

Esse é o ponto de partida da peça, escrita e dirigida por Marcello Airoldi, que estreia nesta sexta, 30, e pode ser vista até 9 de maio, de sextas a domingos, às 20h, no Youtube do Espaço Cultural Bricabraqu­e. Os ingressos, gratuitos, devem ser reservados na plataforma Sympla (www.sympla.com.br).

Em Peixe Fora D’água, Airoldi segue uma trilha recorrente em suas investidas como dramaturgo, a de promover uma reflexão existencia­lista a partir de um sujeito confrontad­o com uma situação-limite. Um Segundo e Meio (2008) e A Queda (2019), dois solos que escreveu e protagoniz­ou, também traziam personagen­s embaralhad­os entre a imaginação e a tentativa de superar um fato real. De sua mesma lavra autoral é Clareana, monólogo com a atriz Dani Moreno, prometido para junho no formato remoto, também sob sua direção. Nesta peça, ele recorre a uma voz feminina que presta um depoimento sobre o abuso sexual sofrido pela filha.

Foi inspirado por um outro projeto pandêmico que Airoldi criou Peixe Fora D’água. No ano passado, Giovani Tozi redigiu o conto Peixe Cabeça de Cobra, sobre as vivências de um artista na quarentena, e desenvolve­u uma série de vídeos com diferentes diretores, como Luiz Damasceno, Marco Antônio Pâmio e Sandra Corveloni. Airoldi enxergou uma analogia entre o peixe cabeça-de-cobra, predador dos mares que devora seus semelhante­s, e representa­ntes da elite que não titubearia­m em eliminar minorias pela própria sobrevivên­cia. “Desenvolvi uma sátira política que, mesmo sem associaçõe­s diretas, diz muito sobre as pessoas que vociferam os absurdos que ouvimos, como a defesa da volta dos militares ou do AI-5”, afirma.

No bunker ficcional não entraram negros, gays, pobres e mulheres, já que não existia a obrigatori­edade de cotas. Como intérprete e produtor do projeto, Tozi reforça a atualidade dessas metáforas ao comparar os eleitos do bunker com a incansável busca por privilégio­s de setores da sociedade, como aqueles que tentam comprar vacinas ou furam a fila da imunização. “São pessoas que não enxergam o quanto são idiotas, porque uma pandemia só tem fim quando todos estiverem protegidos”, declara o ator. “E, como diretor, o Airoldi me ajudou a construir um papel diferente de todos que já fiz, é um outro jeito, outra voz, outro movimento de corpo.”

Quando estourou a pandemia, Marcello Airoldi tinha acabado de entrar em cartaz com a peça Caros Ouvintes e estava pronto para gravar Poliana Moça, novela do SBT, logo cancelada. Com a cabeça fervendo e guardado em casa, ele idealizou, em parceria com o ator Thiago Albanese, um projeto despretens­ioso, quase afetivo. O canal Rede de Leituras, que completa um ano hoje, 30 de abril, foi pensado para aglutinar colegas em torno de leituras dramáticas e discutir formas possíveis de fazer teatro. Os atores Cacá Carvalho, Otávio Martins, Sérgio Mamberti, Leopoldo Pacheco, Eriberto Leão e Ana Lúcia Torre, entre outros tantos, logo endossaram as lives transmitid­as duas vezes por semana e um interesse crescente elevou a audiência.

Foram 77 leituras até dezembro, sendo 55 peças inéditas, interpreta­das por mais de 300 atores e atrizes. A segunda temporada, entre março e abril, revelou outros 26 textos, reunindo 150 artistas, e todo esse material será compilado em um livro publicado pela Giostri Editora. “Virou o registro de uma pesquisa de linguagem e dramaturgi­a que vai ficar acessível mesmo depois da pandemia”, comenta Airoldi, que anuncia uma nova temporada para julho. “Eu me lembro que, quando comecei a estudar teatro, buscava imagens de peças antigas que todo mundo falava, como O Balcão, dirigido pelo Victor García, e não encontrava quase nada. Com o teatro online, está sendo criado um arquivo digital que poderá ser pesquisado por quem se interessar daqui a 20 ou 30 anos.”

PEÇA PROMOVE REFLEXÃO A PARTIR DE SUJEITO EM SITUAÇÃO-LIMITE

 ?? PRISCILA PRADE ?? Parceria. Airoldi (E) dirige o ator Giovani Tozi, que interpreta um morador de um bunker com seu último tubo de oxigênio
PRISCILA PRADE Parceria. Airoldi (E) dirige o ator Giovani Tozi, que interpreta um morador de um bunker com seu último tubo de oxigênio

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