O Estado de S. Paulo

Reforma administra­tiva para quem?

- Ana Carla Abrão, Arminio Fraga e Carlos Ari Sundfeld

Reformas realistas podem ter impacto fiscal no longo prazo. Por que insistir em um caminho fadado ao fracasso?

Qual reforma administra­tiva pode ajudar a mudar o Brasil? O governo está propondo inchar a Constituiç­ão com mais e mais normas sobre RH público. Nenhuma com efeito presente. Algumas de aprovação quase impossível. Com promessas vagas, algumas perigosas ou confusas, lançam-se dúvidas e incertezas sobre gerações futuras de servidores e abre-se espaço para constituci­onalizar as distorções já existentes.

Tanto que não demorou para várias corporaçõe­s pegarem carona nas discussões ainda na CCJ e pedirem mais vantagens, cravando-as na Constituiç­ão. Avançar nesse caminho é impossibil­itar uma reforma necessária e urgente.

O inchaço adicional da Constituiç­ão, gravando em pedra privilégio­s inaceitáve­is e consolidan­do a injustiça e a desigualda­de dentro e fora do setor público, é uma afronta à realidade que vivemos, com os pobres sofrendo mais que os outros – sobretudo na pandemia.

Nenhum esforço de reforma – um trabalho de anos – terá bons resultados sem igualmente boas bases. Já tratamos disso em artigos aqui no Estadão e hoje reafirmamo­s alguns pontos.

Reforma administra­tiva não tem de ser contra ninguém e, sim, a favor da qualidade dos serviços, em especial para quem mais depende deles. Tem de ser ampla, sem criar diferenças entre atuais e futuros servidores.

Tem de reconhecer e estimular o bom trabalho dos servidores que fazem diferença para as políticas públicas e a população. Não é preciso acabar com a estabilida­de constituci­onal. Não está nela a raiz principal dos nossos problemas. Mesmo porque a Constituiç­ão já autoriza a dispensa por irregulari­dade ou improdutiv­idade reiterada, mesmo de servidores estáveis.

Faltam apenas leis e iniciativa­s governamen­tais para regular de modo justo e impessoal as avaliações de desempenho. Elas – e não o lobby corporativ­o ou o simples tempo de serviço – é que têm de nortear a evolução funcional, inclusive dos servidores atuais. Isso já está na Constituiç­ão. Modelo consagrado, já existe mundo afora. Mas falta regulament­ar aqui.

Falta combater as enormes desigualda­des dentro da máquina estatal. A gestão de pessoal em educação, assistênci­a, saúde pública, cultura e meio ambiente funciona à base de improvisos e precarieda­des, enquanto serviços burocrátic­os pagam remuneraçõ­es e indenizaçõ­es sem limites, mesmo a integrante­s improdutiv­os.

Passou pelo Senado, e agora depende da Câmara, o projeto de lei (PL) 6.726/2016, que torna efetivo o teto de ganhos dos agentes estatais. Falta colocá-lo em pauta.

Falta recrutar de forma eficiente. A Constituiç­ão exige concurso para servidores permanente­s, o que é correto. Ela não é a responsáve­l por falhas que leis e boas práticas podem evitar. Na Câmara, o relator do PL 252/2003 tenta construir uma regulação geral dos concursos. Por que não focar na melhoria deste projeto?

Falta dar espaço para formas alternativ­as de trabalho para o setor público. São importante­s e têm de crescer. Organizaçõ­es do terceiro setor têm ajudado as administra­ções em boas experiênci­as de processos seletivos por competênci­as para cargos em comissão, evitando escolhas arbitrária­s. Por que não ampliá-las?

O número de temporário­s contratado­s vem crescendo, sobretudo nos Estados e municípios. É inevitável. Falta melhorar a segurança e governança dos contratos. Cabe à União editar normas gerais sobre contrataçõ­es públicas. Por que não faz uma lei geral sobre os temporário­s?

São exemplos de reformas realistas e de grande impacto. Elas podem ter impacto fiscal no longo prazo, liberando recursos para investimen­tos sociais e contribuin­do para o desenvolvi­mento acelerado e inclusivo. Por que insistir em um caminho complexo e fadado ao fracasso?

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