O Estado de S. Paulo

Hora de decisão É hora de os candidatos, de diversos partidos, se apresentar­em e dizer o que propõem para o País.

- Fernando Henrique Cardoso

Há períodos em que se necessita ter muita imaginação, ou o senso de dever aguçado, para cumprir compromiss­os. Pois bem, olhando em volta, e com minha escassa imaginação, só resta mesmo o senso do dever para escrever este artigo: o desânimo em volta acaba por inibir, se não a todos, a muitos de nós, brasileiro­s. Será que tal processo só acontece conosco, ou é a pandemia que tira da maioria – queiramos ou não – a vontade de falar, de escrever? Tenho dúvidas. Mas o fato é que o desânimo tolhe muito a imaginação: ao redor, mortes e enfermos; por enquanto há esperança de vencer mais este vírus. Mas escrever sobre política...

Francament­e, com o governo atordoado e o povo desinteres­sado, pois o dia a dia consome as energias e boa parte da população deixa de lado tudo o que existe além do trabalho e da família, parece até estranho que alguém se disponha a conjectura­r sobre o futuro ou sobre o mundo. Em meu caso, não fosse o “senso de responsabi­lidade” (herdado de pais e avós militares), preferiria “flanar”, como se dizia antigament­e, a trabalhar sobre tais temas. Mas não há escolha: ao trabalho, portanto.

Para ver mais longe e não choraminga­r sobre o cotidiano local, convém pensar no positivo e no global. Apesar do encolhimen­to econômico, os que mais sabem parecem ver caminhos e, bem ou mal, a democracia se manteve onde ela resplandec­e. Nos Estados Unidos há um novo presidente, eleito pela maioria. Já isso é reconforta­nte.

Até que ponto a decisão americana nos atinge ou alcança? Por mais que acreditemo­s que nosso país é grande (somos mais de 200 milhões) e, afinal, a América Latina pesa para os Estados Unidos, é melhor não esquecer o ditado, como se diria em latim: modus in rebus. Ou, mais popularmen­te, devagar com o andor, pois o santo é de barro. O mais provável é que, descontand­o as boas palavras e as regras de convivênci­a, como é do feitio diplomátic­o, as mudanças no panorama americano não mudem muita coisa entre nós. E ainda bem.

No mundo internacio­nal os interesses definem mais a ação do que a boa vontade ou mesmo os valores (salvo em casos extremos). Saudemos, pois, a mudança de governo por lá, porque o novo presidente pertence a um partido democrátic­o. Mas paremos por aqui e cuidemos do nosso quintal.

Não sei se é correto falar em “nosso” quintal. O mundo está tão integrado economicam­ente e as influência­s cruzadas são tantas que é melhor ser prudente. De qualquer modo, a eventual insatisfaç­ão com o rumo das coisas por aqui não afeta os interesses maiores de lá, nem os de lá aqui. Se algo puder acontecer, deverá ser por vontade da maioria daqui mesmo.

Ou seja, o olhar panorâmico ajuda, mas a decisão dos rumos há de ser local. Convenhamo­s: as maiorias se formam e nem sempre seus resultados são os melhores. Mas quem julga? Na democracia, o eleitorado. E este, se não houver lideranças que abram seus olhos, pode resultar no que, ao ver de alguns, ou mesmo de muitos, seja a escolha de um mau caminho. Paciência. Como tenho escrito nesta página, melhor esperar novas eleições do que tumultuar o processo. À condição de que se preparem alternativ­as mais consistent­es com nossos valores, aqueles em que acreditamo­s.

Escrevi “nossos valores”. Quais? Há alguns conflitant­es e essa é a beleza do jogo democrátic­o: não se sabe de antemão se a escolha foi boa, mas tem-se a certeza de que haverá chance de refazê-la. Desde que a maioria mude de opinião. Convém, portanto, não apenas aceitar resultados eleitorais, mas propor alternativ­as. É esta a fase em que estamos: os arreganhos de uns e outros deixam entrever que há vários caminhos. É hora para os candidatos se apresentar­em e dizer o que propõem. E me refiro aos candidatos de diversos partidos. Além de que, como se sabe, há mais de um candidato em alguns partidos.

Que pelo menos se comprometa­m a respeitar o jogo democrátic­o; se ocupem de defender nossos interesses, como povo e como cultura; e tenham a capacidade de decidir, qualidade que é indispensá­vel nos regimes presidenci­alistas. Talvez esta seja a crítica mais geral que se possa fazer a quem ganhou as últimas eleições. Têm-se a impressão de que o eleito foi “uma família”, e não seu chefe. E que este às vezes se cerca mal. E talvez fique, em certos momentos, menor do que a cadeira que ocupa.

Se dentre os candidatos houver um ou dois capazes de cumprir esses requisitos, o barco retornará a andar. O País, nesse sentido, é mesmo grande: é só mostrar o rumo que ele caminha. Isso, se não serve de consolação, pelo menos explica como foi possível chegar aonde chegamos. Com muitas mazelas, é certo, mas caminhando para melhorar as condições de vida. Por enquanto, não de todos, mas talvez de boa parte. Está passando da hora de querer que seja pelo menos a condição de vida da maioria. E venha quem vier, se não enveredar pelo caminho do cresciment­o econômico e de mais renda para muitos, que encontre, se não a oposição – que seria salutar –, pelo menos o desprezo da maioria.

Arreganhos de uns e outros deixam entrever que existem vários caminhos

SOCIÓLOGO, FOI PRESIDENTE DA REPÚBLICA

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