O Estado de S. Paulo

De Witzel a Renan

- J. R. Guzzo

Renan é levado mais a sério, no papel de magistrado, que o próprio Rei Salomão. É assim que ficou o Brasil.

Imagine, durante dois minutos, o que estaria acontecend­o se aparecesse no noticiário político a seguinte informação: “Wilson Witzel assume as funções de relator na CPI da Covid”. A reação, para 95% das pessoas que acompanham esse tipo de coisa, seria a mesma: “Não é possível; tem de ter algum engano nisso aí”. Quem não se lembra dele? O cidadão, em agosto do ano passado, foi o autor de um prodígio: conseguiu ser posto para fora do governo do Rio de Janeiro, acusado de roubar recursos destinados a combater a epidemia. Isso mesmo, do Rio de Janeiro – que já teve no seu comando um gigante inigualáve­l na história da corrupção mundial, Sérgio Cabral (o homem tem mais de 200 anos de prisão no lombo, condenado por ladroagem em primeiro grau), e cuja Assembleia Legislativ­a deu diploma a cinco deputados que estavam na cadeia no momento da posse. Quer dizer: ser deposto do cargo de governador do Rio não é para qualquer um. Não pode ser normal, assim, que a turma aprovada pelo Senado para dirigir a sua CPI seja essa que está aí: não tem Witzel como relator, mas tem Renan Calheiros.

É possível demonstrar alguma diferença de verdade entre os dois? Não, não é.

Pode uma coisa dessas? Não só pode, neste Brasil de hoje, como está sendo considerad­a um momento de notável importânci­a na história nacional. Renan, um dos senadores que têm mais encrenca que qualquer outro político brasileiro com o Código Penal, responde a um caminhão de processos na Justiça e há 30 anos vem se utilizando das “imunidades parlamenta­res” como principal recurso para manterse fora da cadeia. Pois então: com tudo isso nas costas, ele passou agora a ser julgador. Witzel, ou Maluf, ou Geddel Vieira Lima – aquele que tinha R$ 50 milhões em dinheiro vivo num apartament­o da Bahia – ou qualquer outro colosso nessa área, seriam tidos como uma piada se fossem encarregad­os de investigar alguma coisa. Mas Renan é levado mais a sério, no papel de magistrado, que o próprio Rei Salomão. É assim que ficou o Brasil.

Renan saiu da sua vida habitual, e se tornou um dos heróis da luta pela moralidade pública neste País, por um motivo mais decisivo que qualquer outro: “reinventou” a si próprio, como se diz nos manuais de autoajuda, e assumiu a “persona” de um marechal de campo da esquerda brasileira. Mais: convenceu todo o ecossistem­a político do Brasil de que é, hoje, o cabeça de chave nas lutas populares da “resistênci­a” contra o presidente Jair Bolsonaro. Por conta disso, e automatica­mente, passou a ser tratado como um estadista de primeira classe – um Churchill de Alagoas, que está arriscando a própria vida para salvar o País da direita, do “negacionis­mo” e do genocídio.

É este, claramente, o elixir universal da política brasileira de hoje: fique contra Bolsonaro e, cinco minutos depois, você paga todos os seus pecados, anula qualquer vício de sua vida anterior e ainda ganha uma indulgênci­a plenária, daquelas que a Igreja dava antigament­e e colocavam o cidadão direto no Céu, sem escalas. O próprio Witzel, aliás, está tentando ir um pouco por aí; também descobriu que falar mal do presidente da República dá lucro na hora. Já começa a ser chamado de “ex-governador do Rio de Janeiro” – só isso, “ex-governador”, sem maiores detalhes. Daqui a pouco pode estar nas mesas-redondas do horário nobre da televisão, ao lado dos cientistas políticos, etc. etc. discursand­o sobre como consertar o Brasil. Com sorte, e se não perder o foco em Bolsonaro, ainda pode virar um novo Renan.

As pessoas pararam de prestar atenção no que dizem, ou no que pensam. Na verdade, pararam de pensar. É o ambiente ideal para os Renans.

Renan é levado mais a sério, no papel de magistrado, que o Rei Salomão. Assim ficou o Brasil

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