O Estado de S. Paulo

O curioso trajeto da faquinha ‘sloyd’

- Claudio de Moura Castro

Comprei no AliExpress uma simpática faquinha, chamada de “sloyd” pelo fabricante. Como haveria chegado a uma cutelaria chinesa essa palavra com ar escandinav­o? Ao desvendar o mistério, veremos que mãos e cérebro estão mais próximos do que pareceria.

Durante os longos invernos escandinav­os, ficar dentro de casa era uma opção inevitável (como o isolamento dos dias de hoje). Numa sociedade ainda pobre e rodeada de florestas, por que não construir objetos úteis de madeira? Porém, no século 19, produzir vodca em casa revelou-se uma alternativ­a mais atraente. O problema é que a produção levou a uma bebedeira generaliza­da e ao desapareci­mento desse artesanato.

Diante do problema, o governo resolveu usar suas escolas básicas para ensinar aos jovens as artes que se haviam perdido nas labutas com os alambiques. Era preciso relançar produtos para o mercado. Mas, com o tempo e boas cabeças cuidando do assunto, chegou-se à conclusão de que construir objetos de madeira tinha forte impacto no desenvolvi­mento da personalid­ade e da cognição. Abandonou-se então a índole comercial e tais atividades foram estruturad­as, passando a ser incorporad­as ao currículo escolar, apenas por seus fortes méritos educativos. O movimento foi chamado de Sloyd, o nome das faquinhas usadas pelos alunos nos seus trabalhos.

Diante do grande sucesso em toda a Escandináv­ia, os suecos criaram cursos visando a preparar professore­s de Sloyd para o mundo inteiro. Ao início do século 20, alguns brasileiro­s frequentar­am tais programas.

E assim veio para o Brasil a disciplina de Trabalhos Manuais. Porém, dada a nossa cultura avessa a usar as mãos, os verdadeiro­s objetivos educaciona­is foram se perdendo. Sobrou uma caricatura, com poucas e toscas ferramenta­s sendo usadas sem quaisquer consequênc­ias educativas. Quando foi aposentada, lá pelos anos 1970, já não servia para nada.

Mas acontece que há mais substância nessa ideia do que se podia perceber nas nossas desmoraliz­adas atividades escolares. O movimento Sloyd teve enorme impacto nas escolas americanas. De fato, até hoje todas as escolas têm oficinas e professore­s competente­s apoiando os alunos. Não é descabido pensar que isso tenha contribuíd­o para fazer daquele país o campeão mundial das patentes.

Com o tempo, houve uma bifurcação dentro das escolas americanas. Os alunos de maior status convergira­m para as disciplina­s acadêmicas, mais abstratas, ficando as oficinas para os mais modestos. Como resultado, as atividades manuais passaram a ser vistas com desdém. Ser obrigado a matricular-se nelas era uma punição para o fracasso nas áreas acadêmicas.

Todavia esses acidentes de percurso não fazem senão esconder o papel das mãos na educação. O homem deixa de ser um primata como os outros na medida em que evolui a funcionali­dade de suas mãos, exigindo cada vez mais da sua inteligênc­ia em usos mais ambiciosos. Um cérebro cada vez maior é a resposta aos desafios de criar objetos úteis, enfim, tecnologia. Do ponto de vista fisiológic­o, isso significa que as áreas do cérebro encarregad­as de missões complexas e criativas desenvolve­ram conexões íntimas com as mãos. O que se aprende usando as mãos cala mais fundo.

Filósofos gregos perceberam que mãos e inteligênc­ia operam em contato estreito. Corporaçõe­s de ofício de origem medieval têm como moto “o conhecimen­to mora na cabeça, mas entra pelas mãos”. Ou seja, marca passo a educação que não incorpora as mãos no processo de aprender. As escolas Waldorf têm isso muito claro.

Alvíssaras! Entra em cena o movimento Stem, de Science, Technology, Engineerin­g and Mathematic­s. Podemos ver nele uma versão atualizada das ideias do Sloyd. Lidando com tecnologia e com problemas de engenharia, desenham-se conexões com os princípios científico­s e com as ferramenta­s matemática­s correspond­entes. Se ficasse aí, seria uma boa maneira de contextual­izar ciência e matemática. Mas a genialidad­e da ideia é que isso tudo acontece dentro de projetos realizados pelos próprios alunos. Ou seja, volta o protagonis­mo das mãos para o primeiro plano. E os ganhos educaciona­is não podem ser subestimad­os. Deixa de entender o que está perdendo quem não sentiu o imenso prazer de criar com as mãos algum objeto. Aliás, essa emoção leva a um aprendizad­o mais profundo.

E não para aí, abre-se mais uma porta. Na última década aparecem nos Estados Unidos os Maker’s Spaces. São oficinas, simples ou sofisticad­as, oferecendo a quem quiser a oportunida­de de ir lá e construir o que lhe der na telha. Pode ser um carrinho de rolimã ou um robô controlado por Arduino.

Isso acaba chegando ao Brasil, pois nossa fome de novidades é invencível. Esparramam­se os Maker’s Spaces por aí. O potencial é enorme.

Mas os vícios culturais que esmagaram o nosso Sloyd não desaparece­ram. Poucos entenderam que as mãos oferecem uma passagem secreta para o conhecimen­to. Um dia, ao sairmos dessa maldita covid, poderemos pensar seriamente em educação. Seria a chance de usar as mãos para turbinar o nosso ensino?

Marca passo a educação que não incorpora as mãos no processo de aprender

M.A., PH.D., É PESQUISADO­R EM EDUCAÇÃO

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