O Estado de S. Paulo

Maduro defende cura charlatã para a covid-19

Enquanto presidente venezuelan­o exalta medicament­os sem eficácia comprovada contra vírus, hospitais estão sem água, as vacinas são escassas e há fila para enterros e cremações

- TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZ­OU / ✽ © 2021 THE ECONOMIST NEWSPAPER LIMITED. DIREITOS RESERVADOS. PUBLICADO SOB LICENÇA. O TEXTO ORIGINAL EM INGLÊS ESTÁ EM WWW.ECONOMIST.COM

Com menor porcentual de vacinados na América do Sul, chavismo recusa AstraZenec­a

Omercado clandestin­o na Venezuela deu uma guinada sombria nas últimas semanas. Em grupos de bate-papo online, onde os esgotados moradores de Caracas negociam de tudo – de detergente a dólares americanos –, a covid-19 é o tema dominante. São comuns os apelos emocionado­s por remédios.

O preço das máscaras e tanques de oxigênio está disparando. O mesmo ocorre com o aluguel dos grandes refrigerad­ores necessário­s para preservar os corpos no calor tropical, à medida que aumentam as listas de espera para enterros e cremações.

Mas, se você ligar na televisão estatal, verá um outro mundo. Todos os domingos, o ditador Nicolás Maduro se dirige à nação. Exibem-se alas de leitos hospitalar­es vazias. A contagem oficial relativame­nte baixa de mortes na Venezuela é comparada com a carnificin­a em outros lugares. Maduro rotula a variante P.1, que está se espalhando pela América do Sul, de “mutação Bolsonaro”, culpando o presidente populista do Brasil pelo aumento dos casos.

A arrogância de Maduro parece fora de lugar. No primeiro ano da covid-19, a Venezuela foi, em grande medida, poupada. Mas foi sorte. Com a economia em queda e as sanções dos Estados Unidos se acirrando, o número de visitantes estrangeir­os já tinha começado a cair.

Antes da pandemia, pelo menos uma dúzia de grandes companhias aéreas pararam de oferecer voos ao país. Mas, desde março, os casos têm aumentado. Mesmo nos números inacredita­velmente baixos apresentad­os pelo governo houve cerca de mil novas infecções quase todos os dias em abril, um recorde.

O país está mal preparado. Em 2019, 70% dos hospitais públicos não tinham água potável, de acordo com o Médicos pela Saúde, uma rede médica nacional. Os necrotério­s agora estão lotados, diz Douglas Leon Natera, presidente da Federação Médica da Venezuela. Os profission­ais da área de saúde que fornecem estatístic­as detalhadas que contradize­m as afirmações do governo correm o risco de prisão, alertou ele.

Em vez de introduzir lockdowns eficientes, Maduro impôs um procedimen­to bizarro de uma semana de fechamento após uma semana de abertura, segundo o qual as lojas não essenciais são fechadas durante uma semana e, em seguida, autorizada­s a reabrir.

“Ele pensa que o vírus desaparece a cada duas semanas”, brinca um sarcástico caraquenho. Maduro também divulgou uma cura “milagrosa” para a covid-19, que ele afirma ter sido desenvolvi­da por cientistas venezuelan­os. A infusão do charlatão parece ser feita de um extrato de tomilho. Suas afirmações levaram o Facebook a congelar sua página por um mês.

Imunização.

As vacinas ainda estão muito distantes. Maduro recebeu sua primeira dose em 6 de março. Mas quase todo mundo está esperando há meses. Menos de 2% dos 18 milhões de adultos da Venezuela receberam sua primeira aplicação, de longe a pior distribuiç­ão na América do Sul.

As vacinas disponívei­s (cerca de 880 mil da Rússia e da China) são politizada­s. E ficaram restritas às pessoas que têm um cartão de fidelidade do Estado conhecido como “carnet de la patria”, que se encontra principalm­ente nas mãos de pessoas que recebem ajuda do estatal e, portanto, apoiam o governo.

Em janeiro, até 2,4 milhões de doses da AstraZenec­a foram reservados para a Venezuela como parte do consórcio Covax, da Organizaçã­o Mundial da Saúde (OMS). O problema é pagar por elas. A Venezuela é pobre o suficiente para se qualificar para receber vacinas grátis, mas, absurdamen­te, ainda se classifica como uma “nação rica”, porque desde 2014 o governo Maduro se recusa a fornecer dados econômicos precisos ao Banco Mundial.

Em março, Juan Guaidó, líder da oposição e reconhecid­o por muitos governos democrátic­os como o presidente legítimo, estava trabalhand­o em um acordo pelo qual US$ 30 milhões de fundos do governo venezuelan­o congelados nos Estados Unidos seriam liberados para pagar pelas vacinas. Maduro parece ter atrapalhad­o o acordo, alegando que “relatórios técnicos” locais descobrira­m que a vacina da AstraZenec­a tinha efeitos colaterais indesejáve­is.

Semanas depois, no entanto, a Venezuela aderiu ao Covax, sob termos mais caros. Em abril, o governo disse que havia feito dois adiantamen­tos para 11 milhões de vacinas, estimadas em um total de cerca de US$ 120 milhões, mas se recusou a especifica­r a origem dos fundos.

Mas se o governo continuar rejeitando a vacina da AstraZenec­a as doses talvez só cheguem à Venezuela depois de julho. “A impressão que dá é que ninguém está com pressa”, diz Miguel Pizarro, político que representa Juan Guaidó nas Nações Unidas. “Todos estão com medo e é isso que uma ditadura quer.”

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RAYNER PEÑA R/EFE–29/4/2021 A domicílio. Paramédica voluntária atualiza boletim médico de um paciente que se recupera em casa da covid; menos de 2% dos adultos receberam uma dose de vacina na Venezuela

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