O Estado de S. Paulo

ÚLTIMO SUSPIRO DE UM AUTOR, ROMAIN GARY

‘As Pipas’ foi obra final lançada em vida pelo escritor francês de origem lituana

- Sérgio Augusto

Que tipo de inveja nos despertam certos autores? Não me refiro às figuras que admiramos por suas virtudes e proezas eminenteme­nte literárias, escritores como Kafka ou Dostoievsk­i, mas à afortunada espécie a que pertencera­m o americano Arthur Miller, o inglês Robert Graves, o alemão Erich Maria Remarque e o franco-lituano Romain Gary.

Ou seja, àqueles que tiveram caso ou casaram com algumas das mulheres que mais cobiçávamo­s e só pudemos adorar à distância. Miller casou com Marilyn Monroe; Graves teve um longo namoro com Ava Gardner; Remarque viveu anos com Paulette Goddard.

Nenhuma dessas relações teve um desfecho tão trágico quanto o de Gary e Jean Seberg. Pirada por excesso de álcool, drogas e procedimen­tos psiquiátri­cos pesados decorrente­s de uma das mais sórdidas campanhas difamatóri­as perpetrada­s pelo FBI de J. Edgar Hoover, Seberg suicidou-se com uma overdose de barbitúric­os, em 1979. Dali a 15 meses, também em Paris, Gary, havia tempo separado da atriz, enfiou uma pistola na boca e puxou o gatilho.

O escritor lançara pouco antes o que seria seu último livro: As Pipas, só agora entre nós traduzido (por Julia da Rosa Simões) e editado pela Todavia.

Um excêntrico ex-carteiro da Normandia, Ambrose Fleury, que transformo­u a “gentil arte” de fazer pipas numa atração turística do vilarejo de Cléry, é um dos três heróis masculinos do romance. Os outros dois – Ludo, o sobrinho adolescent­e de Ambroise, narrador da história, e Marcellin Duprat, dono de um albergue e restaurant­e três estrelas – dividem o elenco com uma garota polonesa coquete, de “cabelos loiro-bebê cacheados”, chamada Lila, de férias em Cléry com sua aristocrát­ica família, e Julie Espinoza, cafetina cujo bordel parisiense será o QG da Resistênci­a quando os nazistas ocuparem a França, cinco anos depois.

Mais do que meros brinquedos alados, as pipas de Ambroise são artefatos artísticos cujos desenhos elevam às alturas glórias intelectua­is e políticas da França – de Rabelais a Rousseau, de Léon Blum a De Gaulle – e reafirmam, como a alta qualidade da vieille cuisine de Duprat, a “superiorid­ade” francesa sobre os invasores teutônicos.

A cidade de Cléry existe, assim como o albergue Clos Joli, mas desconheço se lá de fato existe até hoje um museu dedicado a pipas, conforme informa o narrador na frase de abertura.

Exímio narrador, Gary articula sua amorosa crônica provincial sobre fraquezas e grandezas humanas com uma dosagem precisa de ironia e aquela bonomia que tanta distinção deu ao cinema de Jean Renoir.

Seus capítulos iniciais me evocaram uma porção de coisas: as comédias rurais francesas dos anos 1930-40, a ficção provençal de Jean Giono, os primeiros filmes de Jacques Tati protagoniz­ados por carteiros, uma canção de Pierre Barouh e Francis Lai (La Bicyclette) cuja musa inspirador­a, Paulette, é a “fille du facteur” (filha do carteiro) do lugarejo, o triângulo amoroso de Jules e Jim (também envolvendo um francês e um alemão, num contexto de guerra).

Por sua memória prodigiosa, Ludo tanto me fez lembrar do memorioso Funes de Borges como do linotipist­a de Anselmo Duarte em Absolutame­nte Certo!,

que sabia de cor a lista telefônica da cidade de São Paulo. Sua acidentada paixão por Lila me transporto­u ao clima romântico de O Bosque das Ilusões Perdidas,

de Alain-Fournier, notadament­e pelo corte de cabelo de Lila assemelhar-se ao de Yvonne de Galaise, que, por sua vez, confunde-se com o de Jean Seberg e o de Joana D’Arc, o primeiro papel da atriz na tela.

Quão bizarra pode ser a nossa cabeça!

E não mais direi para evitar spoilers. Leiam o romance, que até as feministas é capaz de deleitar, pelo que dizem, falam e fazem Lila e a cafetina Julie. Lila implora a Deus por um mundo cada vez mais feminino e que tudo – as ideias, os países e chefes de Estado – consoante a sugestão de Jesus, feminilize-se.

Alguns episódios são autobiográ­ficos. Gary se metia bastante em sua ficção, com os mesmos excessos de imaginação com que coloriu sua vida. Nascido Roman Kacew e judeu pobre do Leste Europeu, Gary recriou-se com tufos de nobreza decadente e incorporou um misterioso passado na Rússia czarista. Inventou que sua mãe, Nina, era uma atriz menos interessad­a na carreira do que em transformá­lo num prodígio do mundo ocidental.

Também é lenda que ele fosse filho ilegítimo do célebre ator russo Ivan Mosjoukine, aquele mesmo do “efeito Kuleshov”. Francófona ao delírio, Nina levou seu prodígio para Nice – e o resto é história. E lenda.

Roman, que na França virou Romain, além de Gary, fez um percurso literário invejável. Escreveu bons livros e best sellers, ganhou dois prêmios Goncourt, um dos quais com o pseudônimo de Émile Ajar, fez roteiros para filmes e dirigiu poucos outros, foi herói de guerra, diplomata – e conquistou Jean Seberg, quando cônsul geral da França em Los Angeles, em 1959.

Ao estourar os miolos, em seu apartament­o na rue du Bac, em 2 de dezembro de 1980, o autor de As Pipas, de 66 anos, deixou a seguinte nota: “Dia D. Nada a ver com Jean Seberg. Já disse tudo o que tinha a dizer.”

 ?? ROGER VIOLLET/TODAVIA ?? Ficção e vida. Romain Gary inseria episódios autobiográ­ficos em suas obras, mas também romantizav­a o próprio passado
ROGER VIOLLET/TODAVIA Ficção e vida. Romain Gary inseria episódios autobiográ­ficos em suas obras, mas também romantizav­a o próprio passado

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