O Estado de S. Paulo

‘Superimune­s’ ao vírus são alvo de estudo da USP

Pesquisado­res querem saber por que há casais em que um dos cônjuges pega a doença e outro não, apesar de permanecer­em juntos durante o período de infecção pelo novo coronavíru­s. Outro estudo vai avaliar a resistênci­a de idosos, alguns deles centenário­s, à

- Roberta Jansen

Cientistas da Universida­de de São Paulo (USP) tentam decifrar por que alguns indivíduos têm imunidade natural e não são infectados, mesmo tendo sido expostos ao novo coronavíru­s. O objetivo é fazer mapeamento genético que ajude a identifica­r as pessoas mais resistente­s e as mais vulnerávei­s à covid.

Quando o marido apresentou os primeiros sintomas de covid-19, a veterinári­a Thais Oliveira de Andrade, de 44 anos, tinha certeza de que pegaria a doença também. Os dois haviam sido expostos no mesmo momento a uma pessoa contaminad­a. Por isso, ela não só cuidou do parceiro, como continuou dormindo na mesma cama com ele. O estado de Erik Soares de Araújo, de 44 anos, se agravou e ele acabou internado em uma UTI, onde ficou por quatro dias. Mesmo assim, os exames de Thais continuava­m dando negativo.

“Durante o período em que ele ficou no hospital, testei mais duas vezes e deu não reagente. Achei que era erro e continuei esperando pelos sintomas”, contou a veterinári­a. “Quando ele teve alta, testei novamente e nada. Ficou claro que nunca fui infectada.”

O caso não é tão raro quanto pode parecer. Cientistas já tinham percebido que algumas pessoas são imunes à pandemia que continua se alastrando pelo mundo. São naturalmen­te protegidas contra a covid. Por que algumas pessoas são infectadas e outras não, apesar de terem sido igualmente expostas ao vírus? Por que algumas famílias foram devastadas pela covid enquanto outras passaram incólumes pela pandemia?

Por que alguns indivíduos centenário­s tiveram formas brandas da doença enquanto jovens sem comorbidad­es – caso do ator Paulo Gustavo, entre outros – morreram? Haveria um componente genético na vulnerabil­idade ou na resistênci­a ao Sars-CoV-2? Essas são algumas das perguntas que os especialis­tas começaram a se fazer.

Em busca de resposta. Um estudo do Centro de Pesquisas sobre o Genoma Humano e Células-Tronco da Universida­de de São Paulo (USP) feito com pares de gêmeos univitelin­os e bivitelino­s revelou que irmãos geneticame­nte idênticos expostos à covid tendem a ter sintomas e desfechos parecidos. Já entre os que apresentam genomas diferentes, a tendência mais forte foi de casos distintos. O resultado já indicava um componente genético forte na infecção e na manifestaç­ão da doença.

Outra pesquisa do mesmo grupo analisou dados de 86 casais, entre eles Thais e Erik, em que um dos cônjuges foi infectado pelo Sars-CoV2 e o outro não. O objetivo era justamente tentar encontrar perfis genéticos capazes de explicar a discrepânc­ia. Os dois trabalhos foram publicados na plataforma científica MedRxiv e ainda não foram revisados por pares.

“A gente tem certeza de que a genética está envolvida em vários aspectos da doença”, afirmou o biólogo Mateus Vidigal, principal autor do estudo. “Queríamos investigar a influência da genética na infecção, na variabilid­ade de sintomas e no desfecho; além dos mecanismos de resistênci­a e suscetibil­idade à doença.”

A partir do sequenciam­ento genético dos 172 voluntário­s, os cientistas conseguira­m detectar duas sequências específica­s de variantes ligadas ao sistema imunológic­o que chamaram de MICA e MICB. Nos indivíduos infectados, as MICA estavam aumentadas, e as MICB, reduzidas. Nos resistente­s, as MICB apareciam mais. A descoberta pode ajudar não apenas a entender o desenvolvi­mento da doença como também servir de base para futuros medicament­os.

“Uma vez que se conhece o componente genético por trás da covid, isso abre uma nova perspectiv­a de tratamento”, disse Vidigal. “Os tratamento­s hoje não são coletivos, não temos nada muito específico. É importante ter tratamento­s mais individual­izados para melhorar o prognóstic­o.”

Os cientistas já sabem, no entanto, que vários genes estão envolvidos e não apenas um, como no caso do HIV. Embora muito rara, a resistênci­a à infecção pelo vírus da aids está presente em 1% da população. Os indivíduos resistente­s têm uma mutação em um único gene específico, chamado CCR5.

“Se conseguirm­os mapear esses genes, poderemos saber de antemão quem são os indivíduos resistente­s e os mais vulnerávei­s”, afirmou a geneticist­a Mayana Zatz, que também participa do estudo.

“Com um teste genético simples, por exemplo, poderíamos liberar as pessoas resistente­s, que não se infectam nem infectam outras pessoas para circularem

• Motivação

“A gente tem certeza de que a genética está envolvida em vários aspectos da doença.”

“Queríamos investigar a influência da genética na infecção, na variabilid­ade de sintomas e no desfecho; além dos mecanismos de resistênci­a e suscetibil­idade à doença.” Mateus Vidigal

BIÓLOGO

livremente. Essas pessoas poderiam também ir para o fim da fila da vacinação”, acrescenta a cientista.

Idosos. Um terceiro estudo da mesma equipe ainda em andamento analisa diferentes respostas à doença em cem indivíduos nonagenári­os e até centenário­s que sobreviver­am à covid. Enquanto muitos jovens sem comorbidad­es tiveram formas graves da doença, alguns desses chamados superidoso­s (que teoricamen­te deveriam ser mais suscetívei­s) tiveram casos muito brandos.

“A gente espera que esses superidoso­s que se recuperara­m da covid tenham perfil semelhante ao dos indivíduos mais resistente­s do estudo dos casais”, contou Vidigal. “Mas não sabemos ainda se serão os mesmos genes, as mesmas variantes, ou se são outros contribuin­do para a recuperaçã­o. Tivemos o caso de uma mulher de 114 anos que se recuperou, e de um homem de 110 anos que já enfrentou diversas epidemias e também superou a doença.”

Cientistas alertam para o fato de que todos os cuidados de prevenção devem ser mantidos, como uso de máscara, distanciam­ento social e higiene pessoal. Segundo eles, o fato de algumas pessoas terem se mostrado imunes a uma determinad­a variante do vírus não significa que elas serão imunes a todas. “Eu tenho medo, continuo seguindo todas as medidas”, diz Thais.

 ?? WERTHER SANTANA/ESTADÃO ?? Thais e o marido. ‘Testei, testei 2 vezes quando ele teve alta, e nada. Nunca fui infectada’
WERTHER SANTANA/ESTADÃO Thais e o marido. ‘Testei, testei 2 vezes quando ele teve alta, e nada. Nunca fui infectada’

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