O Estado de S. Paulo

Políticos indicam verbas para fora de seus Estados

Parlamenta­res aliados do presidente Jair Bolsonaro destinam R$ 181 milhões para regiões aleatórias, fora de suas bases, em esquema montado pelo governo em troca de apoio

- Vinícius Valfré Breno Pires/

Há 20 anos, Haroldo Cathedral chegou a Roraima e prosperou com negócios nos ramos da educação, da construção e da cerveja. Cultivou um prestígio que fez os roraimense­s darem a ele em 2018 a maior votação para deputado federal na primeira vez em que concorreu à Câmara, pelo PSD. Apesar do compromiss­o de trabalhar integralme­nte para seus eleitores, Cathedral usou sua cota no orçamento secreto para propor benfeitori­as em Minas Gerais.

Mineiro de Itabira, ele é o autor de uma indicação de R$ 1 milhão para pavimentaç­ão de estrada vicinal em Camanducai­a (MG), cidade a 3.250 quilômetro­s de Boa Vista, capital do Estado que o elegeu. O deputado alega que a proposta se deu por meio de “permuta” com parlamenta­res mineiros. Mas não pode dizer o que deu em troca.

“Como eu sou de Minas Gerais, embora eleito por Roraima, fiz uma permuta com outros colegas deputados. Quando é emenda extraorçam­entária, não vejo problema nenhum, não. As emendas individuai­s e de bancada vão todas para Roraima”, disse ele ao Estadão.

Além de Cathedral, outros 15 deputados e senadores aliados do presidente Jair Bolsonaro fizeram indicações para Estados diferentes daqueles pelos quais foram eleitos, com o dinheiro do Ministério do Desenvolvi­mento Regional que o governo usou para agradar a aliados. Ao todo, indicaram o destino de R$ 181 milhões para regiões aleatórias, onde não estão suas bases.

Tudo feito abaixo do radar dos eleitores e dos órgãos de fiscalizaç­ão. Como as indicações foram acertadas diretament­e com o Planalto e ocorreram por meio da “RP9”, só foi possível identifica­r os autores por documento do governo que não é público, mas foi obtido pelo Estadão. Do contrário, não se saberia que 285 deputados e senadores ganharam o direito de controlar R$ 3 bilhões do ministério no momento em que o governo tentava emplacar aliados no comando do Congresso.

A indicação de verbas extras para Estados diferentes é vista com preocupaçã­o por especialis­tas em execução orçamentár­ia. A suspeita é de que, como elas não têm a mesma transparên­cia que as emendas tradiciona­is, sejam usadas como “emendas bumerangue”. Ou seja, haveria ganho financeiro futuro ao político após o município ou estatal contemplad­o assinar contrato para obra ou compra a partir da indicação dele. Na maioria desses empenhos, ainda não houve pagamentos.

Os parlamenta­res que admitiram ajudar regiões aleatórias negaram irregulari­dades, mas apresentar­am contradiçõ­es ao explicar os motivos. Além disso, as justificat­ivas acabaram por reforçar um problema central do orçamento secreto: o critério técnico para definição das cidades que realmente precisam de investimen­tos é vilipendia­do em favor de interesses políticos de aliados de Bolsonaro.

Na planilha secreta do governo, o líder do Podemos na Câmara, Léo Moraes, de Rondônia, consta como o autor da indicação de R$ 5 milhões para obras em Capinzal do Norte e Bacuri. Os municípios ficam no Maranhão, a uma distância de mais de 2.000 quilômetro­s de Porto Velho. “Foi indicação de algum parlamenta­r da minha bancada para o Maranhão. Não passa pela minha escolha de líder, não tem meu nome em ofício encaminhad­o para o ministério ou para qualquer prefeitura do Estado”, afirmou.

Léo Moraes revelou também que, como líder, tinha “caminho aberto” no governo para definir as destinaçõe­s com os recursos extras liberados em dezembro de 2020. Foi nesse período que o Executivo passou a distribuir cotas para deputados e senadores inclinados a votar nos candidatos do Planalto para as presidênci­as da Câmara e do Senado.

Só em janeiro, às vésperas do pleito, o Podemos na Câmara declarou apoio a Arthur Lira (Progressis­tas-AL). Ao todo, parlamenta­res do partido indicaram R$ 71 milhões do orçamento secreto de R$ 3 bilhões.

Uma dupla de deputados do Norte também apresentou versões conflitant­es sobre o motivo da destinação de dinheiro ao Nordeste. Ottaci Nascimento (AM) e Bosco Saraiva (RR), do Solidaried­ade, aparecem no planilhão do orçamento secreto como autores de indicação para o município de Padre Bernardo, em Goiás.

Eles confirmara­m estar por trás de um convênio de R$ 4 milhões para a aquisição de máquinas e equipament­os agrícolas para a cidade goiana. No entanto, deixaram pelo caminho uma série de dúvidas sobre o porquê. Primeiro, Bosco informou que atendeu a pedido de Ottaci, amazonense e deputado de Roraima, para benfeitori­as no município localizado a 250 quilômetro­s de Goiânia.

Por sua vez, o gabinete de Ottaci afirmou que o deputado, na verdade, atendeu a um pedido do correligio­nário goiano, o deputado Lucas Vergílio, líder do partido. Este negou que tenha solicitado o repasse. Foi então que Ottaci Nascimento voltou atrás e divulgou nota afirmando que não foi a pedido de Lucas Vergílio. “Subscrevi essa indicação no ano passado. Vale destacar que atendo esses legítimos pleitos, pois sempre recebo apoio quando preciso indicar recursos para Roraima”, disse. E encerrou sem especifica­r a quem beneficiou com sua cota.

Memória. O discurso de ajuda aos colegas também foi invocado pelo deputado Celso Sabino, do PSDB do Pará. Em entrevista ao Estadão, primeiro ele negou ter destinado R$ 2 milhões para pavimentaç­ão e obras em Santana, no Amapá. A cidade é separada do Pará pelo Rio Amazonas: “Isso é falso”. Em seguida, recorreu

à memória. “Às vezes pedem para mim, para que eu ajude em seus pleitos, para conseguir vacinas, recursos para a saúde. Existe a possibilid­ade de alguém ter me pedido, mas do meu mandato não tenho nada para o Amapá”, frisou. “Pode ter sido do deputado Luiz Carlos (PSDB-AP), somos muito amigos. Ele pede para conseguir recursos para Macapá.”

Ao Estadão, Luiz Carlos admitiu ter pedido o repasse a Santana, mas diretament­e ao ministro Rogério Marinho. “Pode ser alguma confusão (incluir o nome de Sabino na planilha)”, disse.

Quatro deputados contatados pela reportagem negaram, enfaticame­nte, a autoria de indicações para fora de seus Estados, apesar de seus nomes terem sido registrado­s na planilha de controle de repasses do governo federal. Gil Cutrim (Republican­os-MA) e Juscelino Filho (DEM-MA) negam que arranjaram R$ 2 milhões, cada, para a Codevasf atuar na Bahia. O deputado Daniel Coelho (Cidadania-PE) disse que não fez indicações para asfaltamen­to em Tabuleiro do Norte e Chaval, no Ceará. Shéridan (PSDB-RR) afirmou não ter relação com convênio de R$ 2,2 milhões entre o ministério e Cícero Dantas, na Bahia.

Já o senador Márcio Bittar (MDB-AC) disse que precisaria se informar com o seu chefe de gabinete sobre o questionam­ento feito pela reportagem a respeito de repasses para fora do Estado. O planilhão de R$ 3 bilhões do governo liga o senador a repasses de R$ 50 milhões, ao todo. Nem um centavo para o Acre. Tudo foi empenhado para municípios de Goiás e Ceará.

“Não tenho a menor lembrança disso”, disse, sobre as indicações de dezembro de 2020. Em seguida, porém, minimizou a importânci­a de se apontar a autoria das indicações. “O que importa se foi indicação do Zé, do Pedro ou do Manoel? O que importa não é se foi usado o dinheiro público para uma obra e foi feito bem feito?”, disse Bittar.

O maior repassador de recursos do ministério a Estados alheios é o senador Davi Alcolumbre (DEM-AP). Foram R$ 51,6 milhões para atender indicações de senadores sem trânsito no Planalto com os quais ele articulou apoio a Pacheco. Ele não comentou o assunto.

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DIDA SAMPAIO/ESTADÃO - 11/3/2020 Congresso. Sessão plenária na Câmara; documentos obtidos pelo ‘Estadão’ mostram criação de um ‘orçamento secreto’

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