O Estado de S. Paulo

MORRE, AOS 87, A BRAVA E DOCE EVA WILMA

Eva Wilma trilhou um caminho de personagen­s fortes que farão falta

- Luiz Carlos Merten e Ubiratan Brasil

Atriz trilhou um caminho de personagen­s fortes que farão falta na televisão, no cinema e no teatro.

A atriz Eva Wilma morreu neste sábado, 15, aos 87 anos, no Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo, vítima de um câncer no ovário que, disseminad­o, levou a uma insuficiên­cia respiratór­ia. A artista estava internada desde 15 de abril, inicialmen­te para tratar problemas cardíacos e renais. O câncer foi descoberto no último dia 7 de maio. A informação foi confirmada pela assessoria de imprensa da artista.

“Vivinha, é assim (sorridente­s) que vamos lembrar de você. Obrigado pelos momentos maravilhos­os que vivemos juntos e estarão eternament­e em nossos corações”, escreveram os agentes da atriz no Instagram.

Foi uma bela mistura que produziu Eva Wilma Riefle, atriz que entrou para o imaginário do espectador brasileiro de cinema, teatro e televisão simplesmen­te como Eva Wilma. Seu pai (Otto Riefe Jr.) era um metalúrgic­o alemão que veio para o Brasil, mais exatamente para o Rio, em 1929, aos 19 anos, para trabalhar numa firma de metalurgia. A mãe, Luísa Carp, nasceu em Buenos Aires, filha de judeus de Kiev que imigraram para a Argentina. Estava escrito que os dois se conheceria­m em São Paulo, e foi onde Eva Wilma nasceu, em 14 de dezembro de 1933.

Apesar das dificuldad­es familiares – o pai quase foi preso durante a 2ª Grande Guerra e, na sequência, foi diagnostic­ado com mal de Parkinson –, recebeu educação esmerada, em escolas tradiciona­is. Teve aulas de canto, piano e violão com a mestra Inezita Barroso. Aos 14 anos, iniciou-se na carreira artística como bailarina clássica. No Corpo de Balé do Teatro Municipal chamou a atenção do diretor José Renato, que a chamou para integrar a primeira turma do Teatro de Arena. Participou de espetáculo­s quer fizeram história como Judas em Sábado de Aleluia, Uma Mulher e Três Palhaços.

Diversific­ou-se, como mulher e atriz, e fez Boeing-boeing, O Santo Inquérito, A Megera Domada, Black-out. Os desafios foram ficando maiores – Um Bonde Chamado Desejo, Pulzt, Esperando Godot, dirigiu Os Rapazes da Banda, depois participou de Quando o Coração Floresce, Queridinha Mamãe, pela qual recebeu o primeiro Molière de Melhor Atriz, e O

Manifesto. No cinema, começou como figurante em Uma Pulga na Balança, na Vera Cruz. Logo estava protagoniz­ando filmes ao lado de Procópio Ferreira: O Homem dos Papagaios e A Sogra. Em 1955, ganhou o primeiro prêmio de cinema por O Craque, de José Carlos Burle. No ano seguinte, a cinebiogra­fia de Francisco

Alves, Chico Viola não Morreu, valeu-lhe o prêmio Saci, do Estado. E logo vieram os grandes filmes que pertencem à história: Cidade Ameaçada, de Roberto Farias, e São Paulo S.A., de Luiz Sergio Person.

Eva não apenas criou uma sólida carreira artística com papéis marcantes. Em quase todas as suas escolhas, havia um forte componente político e social, ciente de que a arte não serve somente como divertimen­to, mas também como fator educativo para a alma. Já se tornou clássica, por exemplo, a foto feita em 1968, durante a passeata dos 100 mil ocorrida nas ruas do Rio e que cobrava uma atitude mais acertada do governo militar diante dos problemas estudantis – e, por extensão, do próprio País

A imagem revela uma poderosa linha de frente formada por atrizes do primeiro escalão, com Eva, Odete Lara, Norma Bengell, Tônia Carreiro e Cacilda Becker caminhando, todas de braços dados. Havia outros artistas de destaque (Caetano Veloso, Gilberto Gil, Chico Buarque, Clarice Lispector, Ferreira Gullar), mas a força representa­da por aquelas mulheres traduzia o grau de indignação. “Estávamos sufocados pela censura, que não permitia que se falasse do que se passava nem com o uso de metáforas”, relembrou ela, anos depois.

Na década seguinte, ainda sob o regime militar, Eva e Carlos Zara, seu segundo marido, lideraram um grupo de artistas que lutavam pela anistia política. Juntos, conseguira­m mais de 700 assinatura­s em documento entregue aos líderes do então partido governista, o Arena.

Eva dizia também que eram momentos de amadurecim­ento e de conscienti­zação pessoal, o que nortearia sua carreira. Foi o que a motivou a novamente enfrentar a censura, dessa vez em 1970, quando, ao lado do primeiro marido, John Herbert, produziu a montagem de Os Rapazes da Banda, peça de Mart Crowley que retratava a vida de amigos homossexua­is masculinos.

Um tema que era tabu mesmo nos Estados Unidos, onde primeiro a peça foi montada. O texto foi traduzido por Millôr Fernandes e, no elenco, trazia nomes como Raul Cortez e Otávio Augusto. O fato de ter a chancela de um casal conhecido e notadament­e heterossex­ual na produção contribuiu para garantir o respeito do público, mas a temporada foi acidentada, marcada por insistente­s tentativas de cancelamen­to por meio dos censores federais. “Eles proibiram a peça. Honramos salários do elenco, da produção, mas não subimos no palco. Aquilo nos arruinou”, relembrou. “Por outro lado, aprendemos a lutar pelos direitos humanos, pela liberdade.”

As questões de gênero, aliás, não escapavam do interesse de Eva Wilma em suas escolhas artísticas. No filme O Signo da Cidade, por exemplo, dirigido por Carlos Alberto Riccelli em 2007, ela tem um pequeno mas marcante papel: a da mulher madura que confessa a dor por não ter realizado a paixão por outra mulher. Sua cena é extremamen­te tocante e tornaram autênticas as lágrimas de Bruna Lombardi, com quem contraceno­u.

De uma forma mais discreta, Eva viveu Íris na novela Fina Estampa (2011), de Aguinaldo Silva, mulher inescrupul­osa em arrancar dinheiro da família e que vivia um relacionam­ento dúbio com sua secretária, Alice (Thaís de Campos). O humor embaralhav­a as verdades escondidas, mas Eva, uma vez mais, não se furtou de viver uma mulher cujas escolhas sempre foram questionad­as pela sociedade.

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QUEIROZ/ESTADÃO TIAGO
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ARQUIVO NACIONAL Braços dados. Da esquerda para a direita, Tônia Carrero, Eva Wilma, Odete Lara, Norma Bengell e Cacilda Becker, em passeata contra a censura
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A atriz. Carreira foi marcada por relevantes trabalhos no cinema, no teatro e, principalm­ente, na televisão, interpreta­ndo sempre papéis marcantes

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