O Estado de S. Paulo

A grama do vizinho é mais verde

- Carlos Pereira

Não dá para escapar do uso de moedas de troca no presidenci­alismo multiparti­dário.

Opresidenc­ialismo multiparti­dário requer, como condição sine qua non, o uso discricion­ário de moedas de troca pelo presidente. Essa não é uma opção moral do governante. É uma necessidad­e para que o jogo político alcance funcionali­dade em um ambiente em que o partido do presidente não desfruta de maioria legislativ­a. Governos e sociedades que negam esse imperativo pagam custos mais altos de governabil­idade.

Regimes parlamenta­ristas costumam ter partidos fortes, ideológico­s e programáti­cos, capazes de ofertar suporte legislativ­o estável a um governo em troca da alocação de ministério­s e outros espaços de poder a parceiros que façam parte da coalizão de governo.

Já presidenci­alismos multiparti­dários, como o brasileiro, não possuem partidos políticos programáti­cos. Aqui os partidos são ideologica­mente amorfos. Os acordos na construção de maiorias legislativ­as não se dão em torno de princípios, ideologias ou agendas de políticas universais. Se dão em troca de acesso a poderes e recursos orçamentár­ios necessário­s à implementa­ção de políticas locais com a digital do parlamenta­r, que são cruciais para a sua sobrevivên­cia eleitoral em um ambiente altamente competitiv­o.

Esse jogo causa pruridos morais a muitas pessoas no Brasil. Elas querem um sistema político que não possuem. Elas idealizam um sistema político asséptico que não existe. Sempre se lamentam, como se a grama do vizinho fosse mais verde que a sua.

Gerou perplexida­de a informação de que o governo Bolsonaro estava fazendo uso de um suposto “orçamento secreto”, travestido da rubrica de “emendas de relator” (Rp 9), em troca de apoio no Congresso. Ao contrário das outras emendas (individuai­s, de bancada e de comissão), que teriam regras específica­s quanto ao número, valores, destino e teria a sua execução obrigatóri­a, as emendas de relator seriam distribuíd­as de forma sigilosa, conforme a conveniênc­ia política do governo e seu destino seria informalme­nte indicado pelo parlamenta­r.

A alocação de recurso provenient­e de emendas sempre foi distribuíd­a de forma desigual entre parlamenta­res. Existe ampla evidência na ciência política brasileira que mostra que o parlamenta­r que se comporta de forma congruente aos interesses do Executivo apresenta maiores chances de ver suas emendas executadas. Desta forma, não existe inovação do governo Bolsonaro em premiar desproporc­ionalmente aliados. O grande problema dessas emendas Rp 9 é que sua alocação e execução estão fora do alcance da sociedade e de órgãos de controle como o MP, TCU e CGU, dando margem a comportame­ntos desviantes, como o esquema de compra de tratores supostamen­te superfatur­ados, conhecido como “tratoraço da Codevasf”.

Mesmo que o presidenci­alismo multiparti­dário não possa prescindir de moedas de troca, isso não significa que elas tenham que ser ilegais ou dar margem a ilegalidad­es.

A execução impositiva das emendas individuai­s e coletivas, surgida a partir de erros sucessivos na gerência de coalizões, especialme­nte nos governos Dilma e Bolsonaro, fez com que o Executivo perdesse liquidez nas trocas políticas. Ficou restrito fundamenta­lmente a moedas menos flexíveis, como ministério­s e cargos na burocracia. Era esperado, portanto, que o mercado político, cedo ou tarde, encontrass­e novas moedas que destravass­em as relações entre Executivo e Legislativ­o.

O jogo de Bolsonaro com o Legislativ­o fica ainda mais difícil porque, além de ter demorado para montar uma coalizão minoritári­a, o fez em condições de fragilidad­e. Ele perdeu o que tinha (discricion­ariedade na execução das emendas) e não quer gastar o que ainda tem, já que tem preferido alocar ministério­s a quem não faz parte da coalizão ou quem não tem assento e nem voto no Congresso, como os amigos militares.

Não é possível escapar da necessidad­e de moedas de troca no presidenci­alismo multiparti­dário

CIENTISTA POLÍTICO E PROFESSOR TITULAR DA ESCOLA BRASILEIRA DE ADMINISTRA­ÇÃO PÚBLICA E DE EMPRESAS (FGV EBAPE), RIO DE JANEIRO

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