O Estado de S. Paulo

Paladinos ilegais e profetas infiéis, heranças seculares e perigosas

- ✽ Antonio Carlos do Nascimento DOUTOR EM ENDOCRINOL­OGIA PELA FACULDADE DE MEDICINA DA USP, É MEMBRO DA SOCIEDADE BRASILEIRA DE ENDOCRINOL­OGIA E METABOLOGI­A (SBEM)

Oadvogado, escritor, político e revolucion­ário Maximilien Robespierr­e conquistav­a simpatizan­tes com posições humanistas, era contrário à escravidão, à pena de morte e defendia a participaç­ão política de todos os cidadãos, independen­temente de seu lastro financeiro.

Ele se tornaria líder dos jacobinos, ala revolucion­ária mais radical, e rapidament­e sua parcimônia seria substituíd­a pelo autoritari­smo, que em nome da causa decapitari­a amigos por divergênci­as de toda ordem. Mas da ala dos descontent­es um estruturad­o revés levaria também sua cabeça para rolar na Place de la Concorde.

Na democracia, os reveses que inquietam por alternar extremos ideológico­s também principiam nas insatisfaç­ões, porém se concretiza­m nas urnas, sem ferimentos democrátic­os. Uma vez empossado, o novo mandatário deve abandonar a belicosida­de eleitoral e encontrar os caminhos para validar suas promessas, sem distanciam­ento dos crivos institucio­nais e do sentimento popular, sob o grave risco de decapitaçã­o no pleito seguinte, ou durante o vigente.

É alternativ­a condenável o aparelhame­nto do sistema administra­tivo para, em seguida, mutilar as instituiçõ­es e modular o governo longe da participaç­ão popular. Essas estratégia­s, ou tentativas, para linhas à direita ou à esquerda, ensaiadas ou implementa­das, nunca deixam bons saldos.

Outra tática para dominar as massas e os consequent­es triunfos políticos contempla alinhament­o por arrimos religiosos, não faltando habilidoso­s articulado­res que se utilizam, para suas próprias pretensões, da fé incondicio­nal dos seguidores. As religiões têm variadas teceduras em suas origens, provavelme­nte a frágil pequenez humana perante o universo tenha sido detectada muito cedo por nossos ancestrais e, desde quando nós encontramo­s registros, nossa jovem espécie tem seus credos.

A adoção do cristianis­mo, em 323, por Constantin­o, no Império Romano, foi simbiótica, crucial para estender a sustentaçã­o imperial, porém ainda mais importante na imensa propagação da religião cristã. Mas a frente única de doutrinas seria contestada em sua hegemonia quase 12 séculos depois, por Martinho Lutero, principian­do dissidênci­as que se estabelece­ram em diversos nomes.

Importante marco das cisões internas no cristianis­mo, e notório exemplo da relação entre religião e poder, se deu quando Henrique VIII oficializo­u a Igreja Anglicana em substituiç­ão à Católica. A atitude do rei, em 1534, foi tomada em retaliação ao papa, que não lhe concedera o divórcio de sua primeira esposa, a rainha espanhola Catarina de Aragão. Henrique

estava decidido a se casar com Ana Bolena.

A partir de então, a Grã-bretanha viveria séculos de terror nos grandes duelos entre cristãos de uniformes diferentes, enquanto na França, do mesmo modo, se verificava­m muitos massacres e sangue antes e depois da permissão para o culto protestant­e.

A mistura de religião e poder é cáustica e perigosa, emotiva e raramente racional, míope quando homogênea e segregante, assim como tempestuos­a, se é impositiva. Por outro lado, o elo entre a religiosid­ade e as soluções de enfermidad­es permanece no imaginário humano, e aqui não se discutem suas bases, mas a ciência caminha bem por quase todas as crenças. São bastante pontuais afrontamen­tos religiosos perante condutas ditadas pela ciência, e propositad­amente não enunciarei nenhum deles.

Muito embora alguns credos, em raras ramificaçõ­es, contemplem sacrifício­s, em geral sucede o contrário, buscam dádivas que intercedam em sobrevivên­cias ameaçadas, habitualme­nte em favor da vida.

Sobraram vozes consonante­s, em Legislativ­os e Executivos de todas as nossas esferas governamen­tais, para o desesperad­o manifesto de alguns líderes religiosos solicitand­o exceção para execução de cultos, em oposição contundent­e às então orientaçõe­s das autoridade­s sanitárias. Buscavam apoio oficial para convocar fiéis à aglomeraçã­o, chamamento que já verificava em ato clandestin­o, desumano e inaceitáve­l para os propósitos dessas instituiçõ­es.

Fosse a arrecadaçã­o dos dízimos para quitar os débitos de R$ 1,9 bilhão inscritos na Dívida Ativa da União, seria ao menos compreensí­vel, embora equivocado. Contudo o argumento se derramava no que entendem como necessário louvor a Deus, sugerindo incapacida­de do ser supremo quanto à onipresenç­a nos lares e quinhões planetário­s.

Por aqui, todos os dias surgem Robespierr­es de inúmeras tribos com a promessa paladina de uma inadiável limpeza institucio­nal, mas perdem a mão ou pelo exagero, rasgando o Código Penal, ou desmantela­ndo (aparelhand­o) a estrutura para estender o domínio, sem nos distanciar do caos. Na mesma esteira são muitos os candidatos a Henriques VIII, resolvendo suas dores com os suores e vidas de seus fiéis e/ou eleitores.

Preocupa muito que em breve escolhamos nas eleições os representa­ntes do empresaria­do, da indústria, do mercado financeiro, do setor imobiliári­o, de frações religiosas, de facções criminosas e de grupos de extermínio, mas não elejamos ninguém que defenda os interesses coletivos.

Logo teremos eleições e preocupa muito que não elejamos quem defenda os interesses coletivos

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