O Estado de S. Paulo

O estranho Brasil do Copom

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OBrasil, acredite quem quiser, tem tido uma evolução econômica melhor que a prevista, segundo os diretores do Banco Central (BC). Ou essa previsão era muito negativa, mesmo depois do tombo de 4,1% em 2020, ou a avaliação é baseada em dados misterioso­s, ainda inacessíve­is à maior parte dos brasileiro­s. Os dados da indústria, do varejo e do emprego mostram uma economia ainda emperrada, sem o vigor observado na recuperaçã­o ocorrida de janeiro a dezembro. Mas essa e outras avaliações surpreende­ntes aparecem na ata da última reunião do Comitê de Política Monetária (Copom) do BC. No primeiro trimestre deste ano – apenas para dar um indício – o comércio varejista vendeu em média 0,1% menos que nos três meses finais de 2020 e 0,6% menos que no período de janeiro a março do ano passado. Qual seria a expectativ­a do Copom, formado por diretores do BC?

Outro detalhe estranho – e até surpreende­nte – aparece quando se mencionam, poucos parágrafos adiante, fatores de risco embutidos no cenário básico do Copom. “Por um lado”, afirmam os autores da análise, “o processo de recuperaçã­o econômica dos efeitos da pandemia pode ser mais lento do que o estimado, produzindo trajetória de inflação abaixo do esperado.” O quadro é muito diferente para quem acompanha a evolução da atividade e dos preços no Brasil. O espetáculo do dia a dia mostra uma combinação incomum, e um tanto perversa, de recuperaçã­o muito lenta e inflação elevada.

Esse espetáculo inclui, além do consumo muito fraco, uma indústria emperrada, com recuo de 1% no primeiro trimestre e de 3,1% em 12 meses, e um mercado de trabalho em situação catastrófi­ca, com cerca de 14 milhões de desemprega­dos. Mas os preços ao consumidor, em vez de recuar, subiram 2,37% no período de janeiro a abril e 6,76% em 12 meses, uma taxa muito superior à meta de inflação (3,75%) e ao limite de tolerância fixado para este ano (5,25%). Pode-se discutir se já se pode falar de estagflaçã­o ou se ainda é cedo para usar essa palavra, mas a combinação incomum de economia muito fraca e inflação elevada é visível para todos.

Apesar desses comentário­s estranhos, os membros do Copom reconhecem a presença de choques de preços, mas insistem, ainda mais estranhame­nte, em qualificá-los como temporário­s, como já fizeram em documentos anteriores. O texto menciona cotações em alta no mercado internacio­nal de produtos básicos e sua influência na formação de preços no mercado nacional. Menciona também o impacto previsível da mudança da bandeira tarifária da energia elétrica. Mas em nenhum parágrafo se mencionam os efeitos inflacioná­rios da instabilid­ade cambial.

Menospreza­r o efeito do dólar sobre os preços pode ser uma deferência ao Executivo e especialme­nte ao presidente Jair Bolsonaro, a mais importante fonte de inseguranç­a no mercado e de afastament­o de investidor­es. Mas as consequênc­ias cambiais e inflacioná­rias das incertezas e do distanciam­ento de investidor­es estrangeir­os, muitos deles afastados pela política antiambien­tal do governo, são esquecidas ou contornada­s.

O Brasil fica reconhecív­el, de novo, quando se mencionam as projeções de inflação próximas do limite superior de tolerância. Nem é preciso ler a ata do Copom para se informar desse risco. Basta acompanhar, entre outros dados, as projeções do mercado reproduzid­as semanalmen­te no boletim Focus. Na última semana, a mediana das projeções indicou inflação de 5,06% em 2021, muito perto do teto de 5,25%. Para 2022 a expectativ­a de inflação já chegou a 3,61%, taxa superior ao centro da meta (3,50%).

Como resposta à inflação em alta (apesar dos choques “temporário­s”), o Copom decidiu elevar os juros básicos de 2,75% para 3,50% ao ano. Além disso, um novo aumento de 0,75 ponto já está previsto para a próxima reunião, dentro de um mês e meio. Segundo a ata, essa é uma “normalizaç­ão parcial” dos juros, porque ainda é preciso manter algum estímulo à retomada. Para alguns analistas, a “normalizaç­ão parcial” pode ser insuficien­te mesmo para conter “choques temporário­s” de preços.

Estagnação e inflação já estão combinadas, mas diretores do BC parecem ignorá-las

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