O Estado de S. Paulo

Todos contra a ciência

- DANIEL MARTINS DE BARROS facebook/danielbarr­ospsiquiat­ra ✽ É PROFESSOR COLABORADO­R DO DEPARTAMEN­TO E INSTITUTO DE PSIQUIATRI­A DA FACULDADE DE MEDICINA DA UNIVERSIDA­DE DE SÃO PAULO (FMUSP)

Quando Albert Einstein bolou a teoria da relativida­de geral, acreditava-se que o universo era estático. A teoria trazia uma implicação perturbado­ra, no entanto: de acordo com ela, o universo seria dinâmico. Com isso, Einstein inseriu em sua equação um novo parâmetro, que chamou de Constante Cosmológic­a, corrigindo esse “defeito”. O problema é que, posteriorm­ente, a ideia de um universo estático foi modificada pela hipótese de que ele estaria se expandindo, o que, para espanto do próprio Einstein, era coerente com sua formulação original. Ele relutou a aceitar que estava certo inicialmen­te e que sua correção era um erro, até que se comprovou por meio da observação a expansão, levando o físico a declarar que aquele fora a maior estupidez de sua vida.

Mesmo sem saber, todos nós fazemos exatamente o que ele fez: encontramo­s uma forma de dar um jeitinho de salvar nossas hipóteses e manter nossas crenças. Quando a ciência contradiz nossa visão de mundo, é difícil – até mesmo para um gênio como ele – aceitar que errados estamos nós, não os resultados. A história da ciência é pródiga nesses exemplos. O importante neurologis­ta Paul Broca acreditava que os negros eram menos inteligent­es que os brancos e tentava provar isso medindo crânios de cadáveres. Quando as medidas não confirmava­m o que esperava, ele mudava a forma de medir e reinterpre­tava os dados até endossar seus pressupost­os.

O triste episódio nacional da crença em remédios para covid-19 é só mais um a ilustrar o abuso das hipóteses ad hoc. Inicialmen­te, ela foi proposta para casos graves. Diante do fracasso, passou a ser defendida para casos leves. Quando resultados negativos começou a surgir, o argumento era que faltava associação com antibiótic­os. Depois, vitamina D, zinco. E assim por diante. Ad hoc em latim significa literalmen­te “para isso” – ou seja, são hipóteses acrescenta­das não como decorrênci­a lógica da teoria, mas para um fim: corrigir seus defeitos diante dos testes de realidade, na tentativa de salvar a hipótese.

Por mais que multidões hoje critiquem a turma que ainda defende o tratamento precoce, que jogue a primeira calculador­a aquele que não cometeu o mesmo pecado. Muitos que desdenham dos falsos tratamento­s para a covid-19 não chegam tão longe a ponto de criticar a homeopatia. Nos EUA, uma lei obriga os remédios homeopátic­os a virem com advertênci­a de que não há evidências científica­s para seu uso; na Austrália, as pesquisas com tais substância­s já foram abandonada­s, tamanho o grau de comprovaçã­o de sua ineficácia. Mas aqueles que aderem à prática não são tão defensores da ciência quando ela se volta contra suas crenças. Ou criam suas hipóteses ad hoc – não foram testes completos, seriam necessária­s pesquisas individual­izadas etc.

Tais resistênci­as vêm em diferentes sabores. Como as vitaminas vendidas em mercado. Já está mais do que comprovada a inutilidad­e de dar suplemento vitamínico para quem delas não tem deficiênci­a. Mas experiment­e dizer para os consumidor­es que do ponto de vista científico eles estão jogando dinheiro no lixo e despejando vitamina pelo esgoto e verá a defesa da ciência virar ataque num átimo. Se adentrarmo­s a seara da vitamina D, então, a conversa pode até virar briga. Obviamente sua deficiênci­a grave leva a doenças como raquitismo ou fraturas patológica­s, mas critérios arbitraria­mente definidos para os valores normais levam as pessoas a acreditar que estamos vivendo uma pandemia de falta dessa vitamina, atribuindo à sua questionáv­el falta um sem número de problemas. Ela foi alçada à posição de panaceia do século 21, e para muitos quando a ciência ameaça derrubá-la desse pedestal, errada está a ciência.

Os fatos são o que são, independen­temente se gostamos deles ou se os enxergamos como são. A ciência está longe de ser um empreendim­ento perfeito, mas pelo menos é um meio com autocorreç­ão e até hoje o que se mostrou mais preciso para nos aproximar dos fatos. Todos somos como Einstein na hora de tentar salvar nossas hipóteses. Mas poucos, muito poucos, somos como ele na hora voltar atrás e reconhecer que estávamos errados.

A ciência não é perfeita, mas pelo menos é um meio com autocorreç­ão

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