O Estado de S. Paulo

NUNCA FOI TÃO FÁCIL SE EXERCITAR

Aulas online usam vassoura, galão e outros objetos.

- Julio Maria

Quando surgiu, em 2001, o niteroiens­e Fred Martins parecia muito bem resolvido com o som que trazia em Janelas, sua estreia pela gravadora Deck Disc, projetando-se como um artista de um brasileiri­smo pop e urbano muito alinhado com nomes que já até haviam surgido na década anterior na cena carioca. Vieram desse álbum Tempo Afora, Janelas, Flores, 996 e um tanto de ótimas canções que conseguiam ser abrangente­s sem deixar de jogar com alguma sofisticaç­ão. Um caminho viável mas que não, ainda não representa­va o que Fred Martins queria dizer de sua verdade.

Vinte anos mais tarde ele chega com o seu sétimo álbum, batizado Ultramarin­o. Gravou em Lisboa, onde vive há quatro anos depois de passar por uma temporada de sete na Espanha. Algo que deve garantir uma vida e tanto a ser colocada em canções, com todos os arabescos que se respira pelas ruas da península desde a dominação moura somada a tudo o que Fred já havia levado do País, incluindo a experiênci­a de ter trabalhado por 12 anos escrevendo e transcreve­ndo partituras para os songbooks de Almir Chediak. “Aquilo foi transforma­dor”, ele lembra. Impossível não ser tocado por um trabalho de ourives, caçando as notas certas compostas por Tom Jobim, Dorival Caymmi, Chico Buarque e muitos outros que passaram por sua pena.

Antes de voltarmos a 2021, é bom lembrar que no meio desta linha do tempo, em 2011, sua chegada recente à Espanha rendeu um belo álbum em duo com a cantora de Santiago de Compostela, Ugía Pedreira. Acrobata, o disco, abria terras e mares a uma matriz criativa drenada de um sentimento que parece estar na fala, nos gestos, no olhar e na composição de Fred desde sempre. Uma melancolia persistent­e, mesmo no que poderia ser eufórico, e abundante a povos que olham para o mar sonhando com horizontes e despedindo­se por séculos. A Fred, esse mar todo devolveu canções.

A voz e o violão estão no centro de seu trabalho, com uma qualidade de tratamento de estúdio que o próprio artista credita aos trabalhos do engenheiro de som venezuelan­o Hector Castillo, radicado no Brooklyn, Nova York, desde 1995, ganhador de quatro Grammys latinos e colaborado­r de artistas como David Bowie, Lou Reed e Philip Glass. Muito pouca interferên­cia como produtor e muito mais como engenheiro de som na extração de uma limpeza dos violões de Fred e de uma captação de voz cristalina.

Fred escolheu criar uma voz artística, agora mais evidente, das

‘POEMA VELHO’ É DE UMA BELEZA DE SE LEVAR NO CORAÇÃO A QUALQUER CANTO DO MUNDO

audições do canto e do violonismo brasileiro de João Gilberto e toda a bossa que se seguiu a ele. Não é um bossa-novista clássico, mas as ideias desse universo estão nos acordes, no temperamen­to de sua mão direita e no pensamento vocal. Sua voz apenas se acomoda ao campo de seus confortos graves sem nunca buscar a tensão, e talvez esteja nas oscilações de seu vibrato, como os que se ouve nos finais de frase da canção Refém, e na afinação de trechos como as subidas apreensiva­s de Zona Sul, em que chegue aos ouvidos um intérprete mais inconstant­e.

Mas nesse corpo de três partes, o violonista, o cantor e o compositor, é o último quem fala mais alto. Seu violão é estudado e deve apontar as primeiras inspiraçõe­s a uma nova canção

“As aulas com o professor de harmonia funcional Sérgio Benevenuto foram uma chave para mim”

ao deitar caminhos harmônicos que trazem pontas de melodias o tempo todo, aprendidos com o grande professor de harmonia Sergio Benevenuto. “Suas aulas foram uma chave para mim”, diz Fred. E é dele o violão, de onde sai uma estrutura de composição íntima, delicada e capaz de transitar por muitos universos.

O álbum lançado pela Biscoito Fino tem treze composiçõe­s das quais onze são inéditas. Semente, a abertura, uma das parcerias com Marcelo Diniz, vai a lugares mais profundos graças ao belo violoncelo de Lui Coimbra, enquanto Aderaldo, dedicada ao genial improvisad­or cearense Cego Aderaldo, transporta um certo espírito do canto dos repentista­s de um nordeste não menos ibérico com voz, violão e percuteria, um set de percussão com bateria de Chris Wells.

É possível ouvir o Rio de Fred com mais clareza em alguns momentos, como em Zona Sul, uma pós-bossa noturna feita também com Marcelo Diniz e mais o violoncelo de Jed Barahal, as teclas de Patscha, o baixo de Rolando Semedo e a bateria de Wells, e na deslizante passista A Filha da Porta-bandeira, um clássico samba pré-bossa que João Gilberto ao menos ouviria feliz feito em voz e violão com Alexandre Lemos e dedicada à escola de samba Mangueira.

De volta ao outro lado do oceano, Fado Crioulo, com Lemos, é uma perdoável subversão das tradições mantendo a marcação binária dos fados mas desfazendo seus destinos com modulações próprias de um brasileiro. A letra é linda: “Eu navego porque o mar é meu defeito / Eu sou feito de marés e temporais / Eu que trago este navio no meu peito / Tatuei o coração em pleno cais.” E seguem-se a ela Colibri, com Diniz; Blues da Madrugada, com Ana Terra; Estranha Flor, com Lemos; Poema Velho, com Manoel Gomes; e o afro-samba sem terreiro Doceamargo, com Diniz. Quanto mais longe de seu país, mais Fred se encontra nele, e Poema Velho, perfeita em tudo, é de se levar no coração a qualquer canto desse mundo.

“Eu trabalhei por 12 anos com o Almir Chediak fazendo transcriçõ­es em partituras para os songbooks de Tom Jobim, Chico Buarque, Dorival Caymmi... Aquilo foi transforma­dor”

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TABA BENEDICTO / ESTADÃO Disposição. Professora Tina Ramos durante aula
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MARCELA BOTO Ibérico. Há sete anos na Espanha e quatro em Lisboa

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