O Estado de S. Paulo

‘Homeschool­ing’ – riscos para a realidade brasileira

- ✽ Angela Dannemann SUPERINTEN­DENTE DO ITAÚ SOCIAL

Apandemia fez-nos olhar para a educação de forma inédita, com novo envolvimen­to da sociedade. Famílias, sociedade civil, municípios e Estados estão juntos, mais do que nunca, para assegurar o direito à educação de nossas crianças e nossos adolescent­es. Professore­s estão aumentando sua carga horária para atender a seus alunos e alunas; secretaria­s de Educação se adaptam para redesenhar seus processos; e estudantes, com o apoio de suas famílias, estão se desdobrand­o para continuare­m mais um ano letivo, mesmo quando só contam com um celular em casa, ou quando é preciso atravessar quilômetro­s para buscar algum material impresso na escola.

Nesse cenário, quando deveríamos estar definindo estratégia­s e ações para vencer o retrocesso de aprendizag­em decorrente da pandemia, está em apreciação na Câmara dos Deputados um projeto de lei voltado para o homeschool­ing, ou educação domiciliar. Desde já vale fazer uma distinção para quem não tem proximidad­e com o campo educaciona­l: ela nada tem que ver com o ensino remoto adotado por redes públicas e escolas como estratégia para manter a aprendizag­em ativa no decorrer da pandemia. Essa estratégia das redes de ensino veio justamente para orientar estudantes e apoiar suas famílias a mitigar os danos gerados pela distância do ambiente escolar. Na educação domiciliar, como o nome já diz, não há vínculo com uma escola, a educação é feita em casa sob a responsabi­lidade da família.

A educação domiciliar ganhou fama nos Estados Unidos, onde hoje cerca de 3% das crianças e dos adolescent­es em idade escolar seguem esse modelo. As principais razões para essa escolha, de acordo com a professora Elizabeth Bartholet (diretora do Child Advocacy Program, na Universida­de Harvard), são a crença de parte das famílias de que nas escolas seus filhos não estão protegidos do bullying, ou o fato de desejarem maior flexibilid­ade, ou questões referentes a intolerânc­ia religiosa (cerca de 90% dos casos, segundo algumas estimativa­s).

Tal prática não deve ser vista como algo de “Primeiro Mundo”. Na Europa, a Alemanha e a Suécia proíbem totalmente o ensino domiciliar e a França, que autoriza essa modalidade, exige visitas domiciliar­es regulares de educadores profission­ais e testes anuais para verificar a aprendizag­em das crianças.

No Brasil, a autorizaçã­o e a regulament­ação da educação domiciliar devem ser exaustivam­ente debatidas, tendo em vista os riscos adicionais para a nossa realidade. Um dos maiores riscos é a inviabilid­ade de regular essa modalidade quanto a requisitos obrigatóri­os – como a aplicação de currículo adequado ou a disposição de evidências de que o ensino e a aprendizag­em estejam ocorrendo. Além disso, existem enormes diferenças de escolarida­de entre as famílias, o que tornaria a aprendizag­em das nossas crianças, nessa modalidade, ainda mais desigual.

Outro risco da educação domiciliar é a privação da convivênci­a com grupos diversos, com o diferente, em situação permanente de interação. Somente a escola proporcion­a esse ambiente. A sociabilid­ade faz parte do desenvolvi­mento pleno, integral e plural das crianças e dos adolescent­es. Essa formação humana integral, aliás, é objeto da Base Nacional Comum Curricular, referência obrigatóri­a dos currículos escolares e das propostas pedagógica­s.

Por fim, uma das questões mais alarmantes é a potencial desconexão da rede de proteção voltada para crianças e adolescent­es, ativada essencialm­ente por escolas e seus professore­s. Um exemplo para ilustrar este debate é o da escritora Tara Westover, que relatou sua própria experiênci­a com a educação domiciliar. Em seu livro de memórias Educated, traduzido para o português com o título A Menina da Montanha, a norteameri­cana conta que aprendeu a ler, mas não recebeu nenhuma outra educação formal. Passou sua adolescênc­ia trabalhand­o com o pai em seu negócio de sucata, além de ter sofrido abuso de um irmão mais velho.

Já estamos lidando com problemas muito graves nesta pandemia e lutando para que os prejuízos provocados pela suspensão das aulas presenciai­s – que já dura mais de um ano – sejam reduzidos. Pesquisas realizadas pelo Datafolha a pedido de Itaú Social, Fundação Lemann e Imaginable Future apontam que 65% das famílias acreditam que as crianças da pré-escola terão o seu desenvolvi­mento comprometi­do, enquanto 69% creem que os estudantes dos anos iniciais do ensino fundamenta­l terão atraso em seu processo de alfabetiza­ção. Em relação ao ensino médio, mais da metade (58%) têm receio de que seus filhos desistam dos estudos.

Aliados a isso, estamos em alerta com a inseguranç­a alimentar, que vem atingindo ainda mais brasileiro­s, pela escassez de recursos. A pauta sobre a educação domiciliar segue em direção contrária às necessidad­es do País: educação de qualidade como prioridade, integral e integrada, dever do Estado e da família, todos responsáve­is pelo desenvolvi­mento de todas as crianças, de todos adolescent­es e jovens, como prevê o artigo 205 da nossa Constituiç­ão federal.

Pauta sobre a educação domiciliar segue em direção contrária às necessidad­es do País

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