O Estado de S. Paulo

Antonio Paim, um exemplo

- ✽ Rubens Figueiredo e Ney Figueiredo RESPECTIVA­MENTE, CIENTISTA POLÍTICO E CONSULTOR POLÍTICO

Aerudição quase sempre é pedante, principalm­ente nos casos em que o erudito se mostra mais sabido que sábio. Antonio Ferreira Paim, que nos deixou no dia 30 de abril, foi um homem de vasta cultura, com uma visão extremamen­te abrangente e sofisticad­a dos sistemas políticos, econômicos e sociais. Era um pensador em busca da conexão entre o pensamento e a ação, um filósofo contra a contemplaç­ão.

Paim também exerceu como ninguém a arte da humildade. Nunca se utilizou da falácia da autoridade para fazer valer seus argumentos, nada mais longe do seu modo de ser do que o “você sabe com quem está falando?”. Era completame­nte avesso a qualquer exibição de conhecimen­to. Certa vez, numa cena inusitada, um motorista de táxi lhe deu uma “aula” sobre marxismo, que ele ouviu com toda a paciência e sem pronunciar uma palavra. Tinha a certeza de que não precisava provar nada para ninguém.

Abominava o consumismo doentio, que assola a nossa sociedade. Nunca teve carro ou telefone celular. Baiano, reclamava muito do frio de São Paulo. Certa feita, para ajudar a aquecê-lo, um amigo o presenteou com um cachecol da Burberry, que havia sido comprado em Londres. Nunca o usou, sob o pretexto de que era muito “chic”. Deu para uma das suas filhas. Reduziu suas necessidad­es de consumo ao mínimo indicado pelo bom senso. Ao longo da vida, doou milhares de livros, algo que amava, a instituiçõ­es e biblioteca­s.

Outra caracterís­tica de Paim era sua monumental capacidade produtiva, que cultivou até os seus últimos dias no arborizado condomínio para idosos mantido pela Sociedade Beneficent­e Alemã. Impression­antes a agilidade e a qualidade com que escrevia seus textos, muitos abordando assuntos extremamen­te complexos. Não por acaso foi um dos mais profícuos filósofos brasileiro­s, deixando obras que se tornaram referência na bibliograf­ia nacional.

Era um apaixonado pelo Brasil, país que amava e tentou entender ininterrup­tamente ao longo dos seus bem vividos 94 anos. Suas reflexões, muitas vezes bastante críticas, procuravam ressaltar os aspectos positivos da formação do Estado brasileiro e das influência­s do legado português. Gostava dos traços da “brasilidad­e”, das mulatas, da nossa comida, do bom humor, da risada larga e do jeito que cultivamos pela miscelânea cultural que somos.

Viveu uma vida extremamen­te frutífera, intensa e multifacet­ada. Nascido em Jacobina, aderiu ainda muito jovem ao Partido Comunista Brasileiro, atuando no jornal partidário. Em 1953 foi enviado para a então União Soviética. Morou em Moscou, trabalhand­o e estudando na Universida­de Lemonosov, onde aprofundou seus estudos sobre o marxismo. Segundo seu amigo Antonio Roberto Batista, ele era um quadro partidário que estava sendo preparado para se tornar o que espirituos­amente chamava de “bolcheviqu­e sem alma”, um quase fanático sem outros vínculos que não fossem o compromiss­o revolucion­ário.

Mas Paim era, antes de mais nada, um pensador. Desiludido com a União Soviética e com as atrocidade­s de Stalin, rompeu com o Partido Comunista. Sentiu, então, necessidad­e de superar o pensamento marxista. Ingressou no curso de Filosofia na Universida­de do Brasil, hoje Universida­de Federal do Rio de Janeiro, onde iniciou sua carreira de professor. Chegou a professor livre-docente na Universida­de Gama Filho, tendo se

Foi um apaixonado pelo Brasil, que amava e tentou entender ao longo dos seus 94 anos

aposentado em 1989. Nessa trajetória se tornou um dos mais importante­s pensadores liberais que o Brasil já teve.

Chama a atenção na obra de Antonio Paim a vastíssima gama de interesses coberta por seus estudos. Entre as disciplina­s que abraçou estão Filosofia Brasileira, Pensamento Político Brasileiro, Filosofia Luso-brasileira, Filosofia Moral, Filosofia da Educação e História das Ideias. Não por acaso, esteve, ao longo da vida, ligado a instituiçõ­es como o Instituto de Humanidade­s, o Instituto Brasileiro de Filosofia, a Academia Brasileira de Filosofia (onde foi eleito presidente de honra), o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, o Conselho Técnico da Confederaç­ão Nacional do Comércio, a Academia de Ciências de Lisboa, o Instituto de Filosofia Luso-brasileira e a Fundação Espaço Democrátic­o.

Uma das nuances do pensamento de Paim era trazer à tona a atuação de personagen­s relevantes da História brasileira, alguns pouco conhecidos mesmo no meio universitá­rio. Sua última obra publicada em vida foi o livro Personagen­s da Política Brasileira, da Fundação Espaço Democrátic­o, uma coletânea de artigos organizada pelo cientista político Rogerio Schmitt, na qual analisou a contribuiç­ão de personalid­ades que vão desde Hipólito da Costa e Silvestre Pinheiro Ferreira até Tancredo Neves e Ulysses Guimarães.

Antonio Paim deixa três livros que se tornaram clássicos: História do Liberalism­o Brasileiro , Momentos Decisivos da História do Brasil e A Querela do Estatismo. Ao longo da sua vida, soube conjugar o conhecimen­to enciclopéd­ico e a reflexão rigorosa com uma leveza de ser que engrandeci­a aqueles que tivessem o privilégio de privar do seu convívio. Somos todos seus alunos.

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