O Estado de S. Paulo

MANIPULAÇíO E MEDO

Filme ‘O Rebanho’, disponível no streaming e para aluguel, trata de sexismo e histeria religiosa sob a ótica do terror

- Rodrigo Fonseca

Com dois longas inéditos e já finalizado­s (All Inclusive e Infinite Storm), a polonesa Malgorzata Szumowska, de 48 anos, é hoje uma usina de produção – e de reflexão sobre o empoderame­nto feminino – no cinema europeu, emendando dois filmes por ano sempre no rastro das violências institucio­nalizadas e do abandono. Conhecida aqui por O Rosto (Grande Prêmio do Júri na Berlinale de 2018) e Body (melhor direção também em Berlim, em 2015), a cineasta combina seus dois temas autorais em O Rebanho (The Other Lamb), que chega ao Brasil no streaming via itunes / Apple TV, Google Play, Now, Vivo Play e Sky Play.

Mistura alarmada e alarmista de A Vila (2004) com Anticristo (2009), inflamado por uma centelha de ataque ao sexismo, esse thriller assustador, com ecos de misticismo, foi saudado como “obra-prima” em sua passagem pelo Festival de San Sebastián, na Espanha, em 2019. Seu teor de denúncia contra o machismo e a histeria religiosa incendiou o evento espanhol, assim como gerou debates acalorados em sua passagem pelo Festival de Toronto, no Canadá.

“Essa é a primeira experiênci­a que eu faço no terreno do chamado filme de gênero, criando um diálogo com o terror num momento em que vimos grandes filmes como Hereditári­o, A Corrente do Mal, Corra!. Lars von Trier fez algo muito particular nesse ambiente das sombras em seu Anticristo, mas ele é um cineasta que sempre está na minha cabeça. Usei algo dele e desse novo cinema de horror para estudar o fascínio que o fundamenta­lismo causa em mentes alquebrada­s”, disse a cineasta ao Estadão, em San Sebastián.

Um ano antes, quando O Rosto arrebatou a Berlinale, Malgorzata assombrou plateias ao mostrar um Cristo Redentor tamanho P que fica no interior da Polônia, como uma cópia do monumento carioca, a fim de ilustrar um certo provincian­ismo europeu em relação à fé e ao controle que ela exerce sobre as mentes. Quando começou a rodar O Rebanho – que ganhou os prêmios de melhor filme e roteiro no Festival Fantastic Planet, na Austrália –, a cineasta fez uma imersão na web à cata de vídeos sobre rituais pagãos. “Se você fizer uma pesquisa rápida na internet, vai ficar chocado com a quantidade de filmagens, feitas com iphone, de cerimônias católicas de exorcismo na

Polônia. É uma febre”, disse Malgorzata, quando iniciou o projeto. Assolada pelo medo de que a religião possa virar um instrument­o de brutalidad­e, ela resolveu discutir a alienação pelo fervor sagrado do ponto de vista de uma jovem às voltas com a descoberta do desejo. “É uma história da submissão feminina a partir das projeções que um homem de psique fraturada, no caso, um sacerdote, estabelece. Eu não vi The Handmaid’s Tale quando elaborava esse projeto. Mas é fato de que nossas histórias conversam porque a opressão é histórica”, diz Malgorzata, referindo-se ao romance de Margaret Atwood, transforma­do numa série com Elisabeth Moss. “Manipulaçã­o é a dramaturgi­a do medo.”

Idealizado em um esquema de coprodução com a Irlanda e a Bélgica, O Rebanho é potenciali­zado por uma fotografia mesmerizan­te. No longa, a diretora faz uma investigaç­ão sobre o jugo sexista a partir de uma seita que perambula pelos EUA reunindo mulheres sob o comando de um clérigo chamado Pastor (Michiel Huisman). Ele é o único homem de sua seita, expulsando as fiéis que (dele) engravidam e dão ‘varões’ à luz. Nesse universo de jugo fálico monopolist­a, uma jovem ‘ovelha’, Selah (vivida pela atriz Raffey Cassidy, em ótima atuação) vai se empoderar. E reagir, à sua maneira.

“Filmamos em Wicklow (a uma hora de Dublin), sob um frio cortante até para mim, que venho da Polônia, sob a chuva irlandesa, buscando uma analogia entre poder e sexo na mente de um pastor que celebra seu credo explorando o prazer das mulheres. Existe muito simbolismo em cena, até porque eu tentei criar algo próximo dos códigos dos filmes horrorífic­os. Mas há um estudo da alma feminina que vem de A Dupla Vida de Véronique, na busca por inquietaçõ­es existencia­is de identidade”, diz Malgozata, referindo-se ao cult de Krzysztof Kieslowski. “Tenho uma conexão com o cinema que investiga o inconscien­te.”

Ao terminar O Rebanho, Malgorzata filmou a comédia Never Gonna Snow Again, que lhe rendeu uma indicação ao Leão de Ouro no Festival de Veneza de 2020. Inédito aqui, esse longa fala de um imigrante que se torna um guru numa Polônia sedenta de ídolos. “Tem uma nova classe média aparecendo lá”, diz a diretora. “Eles acreditam serem liberais, mas são muito conservado­res, capazes de estranhar o fato de uma mulher estar fazendo filmes em série por lá, mesmo com uma indústria audiovisua­l pequena. É dessa gente que eu quero falar, para que o mundo entenda como eles se multiplica­m.”

 ?? PATRICK REDMOND ?? Direitos. Diretora vê proximidad­e com obra de Margaret Atwood: ‘Nossas histórias conversam porque a opressão é histórica’
PATRICK REDMOND Direitos. Diretora vê proximidad­e com obra de Margaret Atwood: ‘Nossas histórias conversam porque a opressão é histórica’

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