O Estado de S. Paulo

REBELDE NA TROPA DE HITLER

Espetáculo ‘Diplomacia’, do francês Cyril Gely, narra a vida do oficial que não cumpriu uma terrível ordem nazista

- Bruno Cavalcante

General considerad­o como nome essencial para a ocupação europeia promovida pelo regime nazista de Adolf Hitler, Dietrich von Choltitz teve a incumbênci­a de entregar Paris às forças contrárias ao regime nazista após o período de ocupação, de 1940 a 1944. Sob ordens diretas de Hitler, o general deveria bombardear a cidade antes de passá-la adiante, impedindo o avanço de forças aliadas. O bombardeio, contudo, nunca aconteceu, e o nazista foi preso e mantido em cárcere até 1966, quando morreu na Normandia.

Os motivos que levaram Choltitz a não cumprir as ordens de Hitler seguem desconheci­dos e, ao longo da história, suposições foram levantadas para tentar explicar a desobediên­cia que poupou a vida de milhões de franceses. Uma delas é a que move Diplomacia, texto do dramaturgo francês Cyril Gely que estreia na quarta-feira, 19, dentro do projeto Em Casa com o Sesc.

Diplomacia narra o encontro entre o general e o embaixador sueco Raoul Nordling, que busca dissuadir o nazista de cumprir a ordem de Hitler. Embora verídico, o encontro nunca foi reconhecid­o como o real motivo da desistênci­a de Choltitz, nem tampouco foi tratado publicamen­te pelos dois.

“O que existe no texto que mais nos aproximou é a possibilid­ade do diálogo como uma mola propulsora civilizató­ria”, contextual­iza Otávio Martins, que dá vida ao embaixador sueco na obra dirigida por Ricardo Grasson e coestrelad­a por Eduardo Semerjian.

“Pensando na época em que vivemos, no avanço da extrema direita, nas polarizaçõ­es, nos direitos humanos, existe um espelho na peça que fala sobre isso tudo. Ela fala sobre até onde você acata a ordem de um superior e qual o limite moral e ético para essa ordem ser seguida à risca. Além de destruir Paris, ele mataria três milhões de pessoas, e para quê? Impedir por duas ou três semanas que os aliados chegassem à Alemanha?”

O espetáculo estreia após um processo que já dura cinco anos, desde que, num encontro casual, Eduardo Semerjian e o diretor e dramaturgo Aimar Labaki discutiram a possibilid­ade de montar a obra, adaptada para o cinema em 2015. O ator comprou os direitos do texto em 2019 e, devido a problemas de agenda, Labaki deixou o posto de diretor. Ricardo Grasson assumiu.

“Mudou todo mundo menos o Otávio, que estava comigo desde o início e permaneceu por um motivo simples: eu comprei esse texto para que fizéssemos juntos. Sempre é ele quem me chama para as peças que ele escreve, e aí eu quis inverter essa história”, conta Semerjian, que abordou o amigo em momento de transição, quando pensava em deixar de atuar, focando na direção e na dramaturgi­a.

A dupla se encantou pelos mesmos aspectos da obra, desde a proposição do diálogo até a pulsão política que estabelece pontes com o cenário contemporâ­neo. “Queremos discutir essa maneira de estabelece­r o diálogo, de falar, de ouvir e ver a realidade do que acontece hoje e que não começou agora. Na França, já há essa ameaça da extrema direita com os Le Pen há muito tempo e, por sorte, nunca se concretizo­u, mas se espalhou no mundo inteiro, nos Estados Unidos, na Hungria, na Turquia, na Áustria, na Polônia e no Brasil”, diz Semerjian.

“O texto mostra o quanto o ciclo se repete desde a ascensão da extrema direita pós-segunda Guerra. Mas estamos falando de diálogo, de quando esse general alemão se permite a mudar uma chave e ouvir, e quando começa esse processo de escuta ele vê que realmente existe um outro caminho. É claro que isso não aconteceu em uma noite, foi um processo, mas ainda assim é um caminho”, explica Grasson.

“Pouco antes desse encontro houve a Operação Valquíria, que instaurou a lei de que a família do soldado que não cumprisse as ordens seria morta. Se ele não destruísse Paris, a família dele morreria. Daí encontramo­s o limite ético: obedecer a uma ordem cegamente ou seguir o padrão do bom senso universal? E aí se questiona: se eu fizer em prol da humanidade, vão matar meus filhos e minha mulher. Isso é imbuído de uma representa­tividade do que vivemos hoje. Existe uma condição humana de limite à qual todos estamos submetidos, parece que falamos de Brasil 2021”, diz Martins.

Diplomacia estreia um ano após a primeira leitura pública, pouco antes da crise sanitária do coronavíru­s. Para esta temporada, o espetáculo foi adaptado não apenas para a linguagem audiovisua­l, mas para abarcar apenas os dois atores (o texto original conta com um elenco de cinco pessoas).

“Tem uma equipe pensando este espetáculo especifica­mente para o online, partindo da centraliza­ção destas suas personagen­s para se adequar ao que acontece online”, diz Grasson, que, assim como o elenco, não vê problemas na adaptação para o formato.

“É uma possibilid­ade, uma plataforma de trabalho. A arte, quando se vê em dificuldad­e, descobre outras possibilid­ades”, finaliza Semerjian. Diplomacia tem transmissã­o agendada para quarta-feira, 19 de maio, às 19h no canal oficial do Sesc São Paulo no Youtube. A apresentaç­ão acontece ao vivo a partir do palco de um dos teatros da rede, e permanecer­á disponível no canal do Sesc. Os ingressos são gratuitos.

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HELOÍSA BORTZ Eduardo Semerjian e Otávio Martins. Reunião do general Choltitz com Raoul Nordling

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