O Estado de S. Paulo

A delação e a Constituiç­ão

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O uso indevido da delação gera ainda mais desequilíb­rios ao sistema penal.

Oministro Edson Fachin encaminhou ao plenário virtual do Supremo Tribunal Federal (STF) o recurso da Procurador­ia-geral da República (PGR) que contesta a homologaçã­o da delação premiada do ex-governador do Rio de Janeiro Sérgio Cabral. Trata-se de uma excelente oportunida­de para o colegiado do Supremo, à luz da experiênci­a destes anos em que o instituto foi incorporad­o à legislação brasileira, proporcion­ar uma aplicação da colaboraçã­o premiada mais madura e em maior conformida­de com os princípios constituci­onais.

Em primeiro lugar, é preciso lembrar que a delação foi importada de outro sistema jurídico, com pressupost­os e regras diferentes dos daqui. Feita sem os devidos cuidados, sua incorporaç­ão ao ordenament­o brasileiro acarretou não pequenos problemas. Por exemplo, em 2019, em respeito ao princípio da ampla defesa, o Supremo precisou definir que, nos processos penais com réus delatores e delatados, estes tinham o direito de apresentar por último suas alegações finais.

Além disso, as partes envolvidas na delação têm atributos diferentes. Nos Estados Unidos, por exemplo, a promotoria está sujeita a constante controle popular, uma vez que os cargos são preenchido­s por eleição, e não por concurso. Aqui, a colaboraçã­o premiada ampliou os poderes do Ministério Público e da Polícia Federal – por exemplo, negociam a pena com o colaborado­r –, mas suas responsabi­lidades continuara­m as mesmas.

Ao lidar com as delações, o Judiciário deve ter especial zelo com o princípio da presunção de inocência e com a proteção da honra. Isso se aplica a todas as colaboraçõ­es premiadas, envolvam ou não ministros do Supremo. Na delação de Sérgio Cabral, há acusações contra o ministro Dias Toffoli.

Uma colaboraçã­o premiada pode destruir a honra de uma pessoa ou em certos casos a reputação da instituiçã­o à qual ela está vinculada. Por isso, cabe à Justiça ser rigorosa, fazendo uma apuração exaustiva dos fatos acusatório­s antes de darlhes publicidad­e.

A Lei 13.964/2019 definiu parâmetros precisos, não discricion­ários, sobre o momento em que o conteúdo de uma delação pode se tornar público. “O acordo de colaboraçã­o premiada e os depoimento­s do colaborado­r serão mantidos em sigilo até o recebiment­o da denúncia ou da queixa-crime, sendo vedado ao magistrado decidir por sua publicidad­e em qualquer hipótese.”

A delação nada mais é do que a palavra de uma pessoa envolvida em práticas criminosas, relatando crimes de terceiros, em troca de uma pena menor. Não há contexto de isenção. Por isso, seria equivocado tomar essas declaraçõe­s como verdadeira­s, sem antes realizar uma rigorosa apuração.

Precisamen­te porque o delator é parte interessad­a, a delação não é condição suficiente para condenar criminalme­nte uma pessoa. Em sua versão original, a Lei 12.850/13 já dispunha que “nenhuma sentença condenatór­ia será proferida com fundamento apenas nas declaraçõe­s de agente colaborado­r”.

Depois de seis anos de vigência da lei – e com a experiênci­a de uma excessiva e desproporc­ional valorizaçã­o da palavra do delator ao longo desse período –, o Congresso fixou limites ainda mais precisos para o valor probatório da delação. “Nenhuma das seguintes medidas será decretada ou proferida com fundamento apenas nas declaraçõe­s do colaborado­r: (i) medidas cautelares reais ou pessoais; (ii) recebiment­o de denúncia ou queixa-crime; e (iii) sentença condenatór­ia”, dispôs a Lei 13.964/2019.

Além disso, para que o sistema penal possa funcionar com um mínimo de segurança, delações falsas ou incompleta­s devem ser tratadas com rigor. Muitas vezes, a Justiça permitiu aditamento­s e remendos – o que faz com que a palavra do delator mereça ainda menos crédito.

À luz da Constituiç­ão, cabe ao Supremo corroborar os critérios definidos pelo Congresso em 2019, conferindo à delação o valor que lhe cabe, sem exageros e sem ingenuidad­es. Em vez de contribuir para reduzir a impunidade, seu uso indevido gera ainda mais desequilíb­rios ao sistema penal, além de desrespeit­ar importante­s princípios constituci­onais.

O uso indevido da delação gera ainda mais desequilíb­rios ao sistema penal

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