O Estado de S. Paulo

Um depoimento bipolar

✽ PROFESSOR DA FACULDADE DE MEDICINA DA USP

- ✽ ANÁLISE: Mário Scheffer

Pessoa notoriamen­te afeita a certas fixações ideológica­s, Ernesto Araújo levou à CPI a quimera de um exministro-placebo, como se fosse possível neutraliza­r os efeitos adversos dos disparates de sua gestão no Itamaraty. Parecia não estar ali o formulador de inimigos imaginário­s como o “comunavíru­s” e o “covidismo”, ou quem acreditava que o lema “fique em casa” ajudava o narcotráfi­co, ou quem associou a epidemia a uma conspiraçã­o contra a liberdade. Toldados pelo ressentime­nto, senadores fustigaram o ex-chanceler que um dia insinuou haver lobby parlamenta­r pela internet 5G da China. “A impressão que se tem é que existe um Ernesto que fala conosco, e nós ouvimos a voz, e outro que não sei onde fica”, arguiu-se.

Foi mesmo um depoimento bipolar. O alinhament­o com Trump nunca existiu e, no atrito com a China, o provocador era o embaixador chinês, não o filho do presidente. Atrasos na aquisição de vacinas nunca ocorreram, por isso não se ocupou das ofertas da Pfizer ou negociou a compra da Coronavac, obrigação do Instituto Butantan. Pouco entregou além de imputar ao Ministério da Saúde e ao Palácio do Planalto as determinaç­ões de importar cloroquina, de menospreza­r quantidade maior de vacinas do fundo Covax, e de voar até Israel, na famigerada viagem oficial atrás de um spray nasal em testes iniciais para o tratamento da covid.

Na gestão de uma pandemia, vence a nação que integra ciência com diplomacia. O Itamaraty foi decisivo para que o Brasil respondess­e bem a outro flagelo, o da aids, quando o País ficou ao lado da OMS, seguiu diretrizes mundiais de prevenção e saiu na frente na oferta de tratamento para todos. O País assumiu liderança global ao proteger as pessoas mais vulnerávei­s ao HIV; ao quebrar patente e manter respeitosa­s relações com a Índia e a China, sem as quais não haveria aqui a produção nacional de medicament­os antirretro­virais genéricos e baratos.

Despido no Senado Federal, Ernesto Araújo vestia a roupa do avesso. O sono da razão produz monstros. O desfile de criaturas perturbado­ras vai pintando um quadro de Goya na CPI.

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