O Estado de S. Paulo

Análise: ‘Programa reflete lógica política’

- Rafael Cortez ✽ SÓCIO DA TENDÊNCIAS CONSULTORI­A E DOUTOR EM CIÊNCIA POLÍTICA (USP)

Odesenho de uma política econômica em um ambiente de perda de capital político do governo é bastante desafiador, por conta do crescente distanciam­ento entre o diagnóstic­o da equipe econômica e as decisões, de fato, aprovadas pelo presidente. O próprio ministro da Economia, Paulo Guedes, já sinalizou a diminuição do apoio do presidente Jair Bolsonaro à agenda liberal que, neste momento, estaria em 65%.

Curiosamen­te, esse distanciam­ento entre decisões de governo e a política econômica ideal ocorreu simultanea­mente à aproximaçã­o do governo com o Poder Legislativ­o, resultando na eleição de nomes para o comando das Casas legislativ­as que seriam mais próximos da atual administra­ção.

O caminho desse distanciam­ento é razoavelme­nte simples: a perda de popularida­de presidenci­al aumenta a sensibilid­ade do governo às demandas particular­es de sua base de apoio partidário e entre os agrupament­os econômicos e sociais. Os caminhonei­ros representa­m um grupo especialme­nte privilegia­do na luta por influência nas decisões do governo, por conta do simbolismo da categoria em relação ao presidente e diante de potencial mobilizaçã­o que, no limite, reforçaria a leitura de falta de governança.

O programa Gigantes do Asfalto, anunciado pelo governo, é uma tentativa de desenhar uma política setorial sem retomar o mal-estar que foi causado pelos sinais de voluntaris­mo presidenci­al decorrente­s de ameaças de intervençã­o e de mudanças no comando de empresas estatais. As demandas da categoria não são novidade e, em boa medida, são resultado da oferta/demanda de frotas e da regulação do frete/combustíve­l.

Os limites para a regulação desses temas são crescentes; não por um acaso, o aceno aos caminhonei­ros deixou de lado mudanças no tocante ao preço do diesel, uma das principais demandas do grupo. O programa, então, se concentra em linhas de crédito com participaç­ão da Caixa; anúncio de investimen­tos em infraestru­tura e medidas burocrátic­as.

Essa batalha entre a lógica política em um cenário de antecipaçã­o de calendário eleitoral deve ser reforçada ao longo do tempo. O programa retrata a postura do presidente em relação aos temas do debate público: pouca defesa das reformas estruturai­s e acenos para temas com impacto na sua base de apoio tradiciona­l, tendo em vista a corrida presidenci­al de 2022. Os efeitos da CPI da Covid e o risco eleitoral só devem reforçar esse dilema na gestão da política econômica.

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