O Estado de S. Paulo

FUNERAL DE STALIN EM IMAGENS INÉDITAS

‘É insano que milhões de pessoas tenham lamentado a morte de um tirano’, diz ele

- Luiz Carlos Merten ESPECIAL PARA O ESTADÃO

Há uma nova geração de grandes autores do cinema russo. Nenhum talvez seja maior que Sergei Loznitsa. Graduado em Matemática Aplicada, foi cientista no Instituto de Cibernétic­a de Kiev, especializ­ando-se em inteligênc­ia artificial. Em 1997, deu uma guinada para o cinema e formou-se, em Moscou, no VGIK, Instituto de Cinematogr­afia da Rússia. Desde então, fez quatro longas de ficção, incluindo o deslumbran­te Minha Felicidade, e 21 documentár­ios, dos quais o mais recente, Funeral de Estado, será lançado somente como Funeral, no Brasil, pela MUBI, na sexta, 21.

O funeral do título é o de Josef Stalin (1878-1953), o ditador que governou a URSS com mão de ferro, utilizando a interpreta­ção leninista do comunismo como base para a sua governança, que ficou conhecida como stalinismo. Loznitsa não vê muita diferença entre trabalhar com documentár­io e ficção, com material de arquivo ou filmado por ele. “Cada filme tem seu estilo, sua linguagem, sua estrutura.” E, se ele se dedicou ao documentár­io no último ano e meio, foi por causa da pandemia, que provocou o isolamento social e o impede de iniciar a próxima ficção, que será filmada na Ucrânia, onde nasceu, há 56 anos. Será um complexo filme de natureza histórica, com milhares de extras. Seu planejamen­to e préproduçã­o dependem de um eventual retorno à normalidad­e que, atualmente, segue difícil, na Rússia e no mundo.

• Em Cannes, você disse que a teimosia era o principal atributo dos ucranianos. Atualmente, acompanham­os a perseguiçã­o de Vladimir Putin a seu opositor, Navalny. Para ser crítico na Rússia pós-soviética é preciso ser teimoso?

Não creio que seja uma questão de teimosia, mas de inteligênc­ia e senso comum. Qualquer pessoa que tenha esse senso das coisas e o mínimo de inteligênc­ia percebe que as ações do Estado russo são destrutiva­s, desonestas e muito perigosas. Digo isso pensando não apenas em nós, russos, mas no mundo todo. Não existe oposição política neste país e a sociedade civil é tão fraca que se pode dizer que não existe consciênci­a de cidadania. Vemos todo tipo de fake news, de simulações e manipulaçõ­es vindas de Moscou, mas, no geral, não existe uma força coerente na Rússia, neste momento, capaz de oferecer qualquer alternativ­a positiva ao regime.

• O material que você usa em Funeral é impression­ante. Stalin foi, durante muito tempo, um assunto tabu na antiga URSS. Como surgiu o documentár­io?

Cheguei a este material quando estava trabalhand­o na montagem de meu filme anterior, O Processo, justamente sobre os processos do stalinismo, nos anos 1930. Em conversa com o diretor do Arquivo Nacional da Rússia, ouvi dele que no acervo havia cerca de 250 horas de material filmado somente sobre o funeral de Stalin, em 1953. Fiquei muito interessad­o e, ao ter acesso às imagens, imediatame­nte me dei conta de que teria de fazer um filme sobre aquilo. Logo após a morte de Stalin, seu nome foi apagado do discurso público e, por muitas décadas, ele se tornou quase uma persona non grata na URSS. O filme O Grande Adeus, feito apenas alguns meses após sua morte, foi mostrado apenas uma vez ao Comitê Central do Partido Comunista e logo em seguida foi arquivado. Só foi redescober­to nos anos 1990. O mesmo ocorreu com o restante do material sobre o funeral de Estado. Foi por isso que ao começar a desencavar aquelas centenas de horas de filme com meu editor, nossa impressão foi a de que havíamos descoberto um tesouro. Hoje em dia, a percepção em relação a Stalin mudou na Rússia. Ele é exaltado pelas autoridade­s como administra­dor eficiente e vencedor da 2ª Guerra Mundial. Monumentos são erigidos em sua homenagem em quase todas as cidades através da Rússia e o que não faltam são livros sobre ele nas livrarias.

• O que mais chama atenção é a pompa e a circunstân­cia desse material original. Foi filmado por anônimos ou havia algum diretor importante para estabelece­r um conceito?

Isso foi colhido por profission­ais que trabalhava­m filmando material documentár­io em toda a URSS. Listamos cerca de 200 nomes de cinegrafis­tas nos créditos, incluindo o maior nome do Departamen­to de Documentár­io e Propaganda da época, Roman Carmen. Havia um sistema de documentaç­ão pela imagem muito organizado em todas as repúblicas e, no momento em que a morte de Stalin foi anunciada, essas centenas de profission­ais foram a campo para filmar as reações das pessoas e o passo a passo do funeral, propriamen­te dito. Quatro grandes diretores – Aleksandro­v, Gerasimov, Chiaureli e Kopalin – foram encarregad­os de fazer o filme oficial, O Grande Adeus, mas como já disse, ele foi exibido apenas uma vez e desaparece­u por um longo período.

• Em um filme do grego Theo Angelopoul­os, o anúncio da morte de Stalin provoca uma histeria. As pessoas choram e desesperam-se nas ruas. Sentem-se órfãs. Era resultado da eficiência da máquina de propaganda do regime. Ao cavoucar nesse material, qual foi sua intenção: fazer uma crítica da época, ou usá-lo para refletir sobre a Rússia de Putin?

Antes de mais nada, é importante que essas imagens sejam vistas. Na Rússia, ouvimos muito sobre Stalin e o culto à sua personalid­ade, mas nenhum de nós – das novas gerações – vivenciou nada disso. Temos um ditado: “É melhor ver uma coisa pelo menos uma vez do que ficar ouvindo sobre ela centenas de vezes”. O cinema nos oferece a oportunida­de única de reviver tudo o que parecia enterrado. A histeria, o culto. Minha intenção foi fazer o espectador atual ser parte daquele cerimonial, conduzi-lo através daquela encenação como se estivesse ocorrendo aqui e agora. É insano, praticamen­te incompreen­sível, que milhões de pessoas tenham lamentado a morte de um tirano que destruiu suas vidas, que torturou e matou. Mas esse é o poder do culto, da ilusão que a propaganda pode criar. Claro que se trata de uma ferramenta, mas não creio que exista isso que você chama de Rússia PÓS-URSS. O país mudou de nome e o regime soviético não mais se chama assim. Na verdade, ele morreu com Stalin, e só sobreviveu a ele por algumas décadas por pura inércia. A mentalidad­e, o cerne da sociedade, seu centro, não mudaram. É claro para quem observa o que se passa hoje na Rússia. Então, digamos que o filme pode ser uma ferramenta útil para quem quiser entender a Rússia.

• Você não faz entrevista­s nem se utiliza de narrador, mas a estrutura consegue ser, mesmo assim, bastante sólida. Em que momento você percebeu que este seria seu caminho?

Nunca uso narração nem comentário­s em meus filmes. Não creio que seja necessário. Com relação ao uso do som, decidi que seria a música tocada no próprio funeral, para marcar o clima e o ritmo da narrativa. Mas devo dizer que fomos muito afortunado­s ao descobrir as gravações da cobertura de rádio pelo país inteiro naqueles dias. Usamos trechos daquelas gravações, e tenho de confessar que, muitas vezes, me pareciam mais surreais que as próprias imagens.

• Como foi o processo de edição? Foi preciso pagar direitos para utilizar o material?

Trabalhei com um editor e um pesquisado­r. Algumas cenas eu editei sozinho, mas quase sempre foi em dupla com ele. A montagem durou cerca de três meses e foi muito intensa, porque tínhamos muito material para selecionar. Todas as imagens vieram do Arquivo Nacional Russo de Fotos e Filmes, que se localiza em Krasnokors­k, perto de Moscou. Claro que precisamos adquirir uma licença de uso destes arquivos. Os negativos foram escaneados em 2 K, e aí minha equipe de restauro trabalhou mais cerca de um mês e meio, limpando e restaurand­o as imagens. Depois disso, consumimos mais quatro dias para devolver o brilho às cores. Todo esse cuidado técnico com a qualidade do filme foi essencial porque, desde o início, ficou claro que o filme teria de passar nos cinemas. O mais curioso é que tudo começou com arquivos de baixa qualidade, em preto e branco. Quando o material chegou do laboratóri­o foi que descobri que 70% do que eu achava que era PB, era em cores. Isso ocorreu faltando poucas semanas para a première em Veneza. Decidi manter o material como era, sem colorizar o que havia de preto e branco. Fiquei muito satisfeito com o resultado, mas, em Veneza, os críticos quiseram saber qual era a minha filosofia, misturando preto e branco e cores. Não tinha filosofia nenhuma, foi um acidente!

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ALEX SILVA/ESTADÃO – 4/10/2018 Diretor. Veio a São Paulo em 2018, para a Mostra
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MUBI Documentár­io. Útil para quem quiser entender a Rússia

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