O Estado de S. Paulo

Ordens e internet

- William Waack

Depoimento de Pazuello expõe dualidade de mando que aumenta confusão interna do governo.

Énotório que Jair Bolsonaro governa para e pela internet. Com resultado que está ficando muito nítido pelos trabalhos da CPI da Covid: a existência de uma espécie de dualidade de mando com prejuízos diretos no combate às diversas crises. O pecado original foi o papel importantí­ssimo das redes sociais na vitória dele em 2018. São ferramenta­s indispensá­veis para ganhar eleições, mas instrument­os precários para governar – e é pensando nelas que Bolsonaro baseia suas ações.

“Postagens na internet não são ordens”, disse seu ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello, ao depor na CPI da Covid num esforço bem orientado por advogados para desmentir o óbvio. Sim, no caso do governo Bolsonaro, são ordens (mas em juridiquês não são). O próprio Pazuello postou um célebre vídeo – na internet – ao lado de Bolsonaro, dando conta de que um manda (o presidente) e o outro (o general intendente) obedece.

“Mas era coisa de internet”, desculpou-se Pazuello. O efeito é o mesmo: Bolsonaro consagrou essa dualidade de mando dentro do próprio governo. Dedicado como sempre à atividade de animador de redes digitais, suas “ordens” que não são “ordens” servem no mínimo (com muita boa vontade) para criar confusão interna. No caso da pandemia, a CPI foi razoavelme­nte bem-sucedida também em demonstrar a existência de uma estrutura paralela de assessoram­ento governamen­tal que, no fundo, é a avaliação de quais conteúdos obtêm melhor resposta nas redes digitais que Bolsonaro pretende atingir.

Ocorre que dualidade de mando paralisa qualquer administra­ção complexa, como é o caso do governo brasileiro. Na prática, Pazuello e seus antecessor­es se viram divididos entre o que eram as posturas recomendad­as pelas áreas técnicas (na questão de uso de medicament­os, por exemplo) e o que o presidente pregava nas suas redes – além da exigência aos ministros de um tipo de lealdade já fartamente comparado ao “Führerprin­zip”, a ideia de que o líder tudo sabe e nunca falha.

O que aconteceu no combate à pandemia já era repetição do que afetara anteriorme­nte setores como economia ou política externa (mas não só). Na economia, por exemplo, Bolsonaro promoveu grande alarido, com enormes prejuízos para a Petrobrás, ao dizer que ia interferir na formação de preços de combustíve­is. Repetiu a “fórmula” com o Banco do Brasil, deixando os agentes econômicos nos mais diversos níveis preocupado­s sobre qual seria, afinal, o limite da intervençã­o estatal. Era o que vinha dizendo o ministro da Economia ou o que o presidente falava para sua turma na internet?

Na política externa essa “dualidade de mando” criou uma situação esquizofrê­nica para o principal parceiro comercial brasileiro, a China. Valem os ataques que Bolsonaro reitera nas redes ao regime chinês ou as súplicas dirigidas a Pequim por parte de ministros (como a da Agricultur­a) e governador­es (como o de São Paulo) pela manutenção de laços para garantir exportaçõe­s e suprimento de insumos para vacinas?

Bons observador­es que são da cena brasileira (Pequim sabe cuidar de seus interesses), talvez os chineses se orientem pelo comportame­nto de duas instâncias políticas hábeis até aqui em lidar com Bolsonaro. Uma é o STF, que lhe impôs limites severos e pensa sempre uma jogada política adiante do presidente e que não mais responde às provocaçõe­s feitas por ele através das redes digitais.

Outra instância política é a do Centrão, que congrega notórios especialis­tas em sobrevivên­cia política e defesa dos próprios interesses. Os articulado­res da base de sustentaçã­o de Bolsonaro no Legislativ­o chegaram ao acordo tácito de deixá-lo falando sozinho. Com eles não existe mais dualidade de mando, pelo menos no que se refere à distribuiç­ão de verbas entre parlamenta­res: tomaram conta disso, e deixaram o que tem de batata quente para ser decidido entre os ministros do Desenvolvi­mento Regional e o da Economia, por exemplo.

O resto é Bolsonaro falando para a internet.

Jair Bolsonaro conduz um governo confuso e desarticul­ado

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