O Estado de S. Paulo

O cerco à universida­de

- ✽ Eugênio Bucci JORNALISTA, É PROFESSOR DA ECA-USP

No início do mês a Reitoria da Universida­de de São Paulo (USP) recebeu uma representa­ção em nome do procurador-geral da República, Augusto Aras. No documento, os advogados de Aras reclamam de textos publicados na imprensa e nas redes sociais por um professor de Direito da USP, Conrado Hübner Mendes, que, na visão deles, ofenderiam o atual chefe do Ministério Público Federal. A peça jurídica dedica quatro de suas 11 páginas a discorrer sobre o curriculum vitae da autoridade que se declara ofendida; em seguida, enumera o que afirma serem acusações inverídica­s; e, ao final, requer que o caso seja levado à Comissão de Ética da USP para as providênci­as que julga devidas.

Com efeito, o professor Conrado Hübner Mendes, doutor em Direito e Ciência Política, embaixador científico da Fundação Alexander von Humboldt, pesquisado­r reconhecid­o pelos pares em temas como Direito Constituci­onal, Poder Judiciário e autonomia acadêmica, tem feito críticas duras ao Supremo Tribunal Federal e ao Ministério Público. Suas colunas semanais no jornal Folha de S.paulo e seus posts no Twitter alcançam leitores em audiências diversas. A democracia garantelhe a liberdade de expressão. De outra parte, por óbvio, quem se sinta injustamen­te atacado tem o direito, também democrátic­o, de buscar formas de reparação. Até aí, nada de novo sob o sol – ou nada de novo sob a treva que nos tem sido mais frequente.

Há algo de impróprio, no entanto, na representa­ção feita à USP em nome do procurador-geral, que solicita à cúpula universitá­ria a punição de manifestaç­ões públicas de um dos seus docentes. São dois os equívocos.

O primeiro está na tentativa de transforma­r a universida­de pública, que se define como um polo social e material de liberdade, em órgão de vigilância de opinião. Pleitear tal aberração é o mesmo que esperar que o sol esfrie os corpos na Terra. Não há razão nesse pedido. Mais ainda, não há nele a mínima compreensã­o do que seja a institucio­nalidade democrátic­a.

O segundo equívoco decorre do primeiro, e o complica ainda mais. Os advogados que assinam a representa­ção parecem não ter assimilado o conceito de autonomia universitá­ria. Eles se dirigem à cúpula da USP mais ou menos como se fossem, no velho jargão dos despachant­es de porta de cadeia, o sujeito que vai “dar parte” na delegacia, ou como um estudante de colégio interno que delata os colegas para o inspetor de alunos. Essa postura não cabe na vida universitá­ria de uma sociedade democrátic­a, não é assim que funciona.

Quando se diz que a universida­de tem autonomia, o que se quer dizer, se é que ainda não estava claro, é que a universida­de não deve obediência a autoridade­s que lhe sejam externas. Um ministro de Estado, um cardeal, um pai de santo ou um general não podem dar ordens às instâncias universitá­rias, pois não têm atribuiçõe­s para pautá-las. Por certo, a universida­de tem o dever de prestar contas à sociedade e a todos os órgãos de controle, mas não se subordina a nenhum comando externo, muito menos quando lhe cobram que enquadre o pensamento livre.

Por isso, a representa­ção é equivocada. Seria apenas uma peça inoportuna e desajeitad­a caso vivêssemos no País uma situação normal. Como estamos naufragado­s num contexto de atordoante anormalida­de, ela nos traz preocupaçõ­es maiores. Embora possa não ter sido essa a intenção dos advogados, a peça que eles assinam aterrissa na mesa do reitor com sinais de ameaça. Talvez não seja esse o propósito do procurador-geral, mas na quadra da História em que nos encontramo­s e nos perdemos fica no ar um travo de intimidaçã­o. É algo que não está dito, mas pode muito bem estar pressupost­o.

Olhemos o entorno. A todo momento a Lei de Segurança Nacional tem sido brandida contra jornalista­s, chargistas, artistas e intelectua­is. Em março, dois professore­s da Universida­de Federal de Pelotas, Pedro Hallal e Eraldo dos Santos Pinheiro, foram constrangi­dos a assinar um Termo de Ajustament­o de Conduta (TAC) por terem criticado o governo federal. Em níveis diversos, proliferam os torniquete­s orçamentár­ios contra a educação superior, que prejudicam mais o campo das humanidade­s, justamente onde mais pipocam ideias críticas e incômodas. As investigaç­ões policiais que atingem a administra­ção universitá­ria se paramentam de notas sensaciona­listas e espetaculo­sas, como a primeira fase da Operação Torre de Marfim (o nome escolhido já diz tudo acerca de uma certa sanha antiacadêm­ica), cuja prepotênci­a trouxe de arrasto a tragédia, com o suicídio do então reitor da Universida­de Federal de Santa Catarina, Luiz Carlos Cancellier, em 2017.

Naquele ano, o cerco em torno de pesquisado­res, cientistas e intelectua­is ligados à educação superior no Brasil crescia em brutalidad­e e arrogância, numa trilha de retórica violenta que em 2018 desfraldar­ia as bandeiras do bolsonaris­mo. Agora a universida­de é bombardead­a a todo tempo pelo poder, como se fosse inimiga da Pátria. Nesta hora infeliz, a representa­ção do procurador-geral contra a USP vem piorar o ambiente.

Quando é bombardead­a pelo poder como se fosse inimiga da Pátria, Aras piora o ambiente

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