O Estado de S. Paulo

‘ARANHA’ E SUA TEIA TECIDA COM ÓDIO E TRAIÇÃO

Filme de Andrés Wood, que traz à tona o passado de violento grupo nacionalis­ta chileno, integra o Ciclo Cinema e Política que começa hoje

- Luiz Carlos Merten ESPECIAL PARA O ESTADÃO

Andrés Wood nasceu em 14 de setembro de 1965, em Santiago. Tinha 8 anos quando houve o golpe militar, em 11 de setembro de 1973. É nove anos mais velho do que Sebastián Lelio, 11 mais do que Pablo Larraín. Em 2013, o site espanhol Cassmerica listou Machuca , de 2004, como um dos 20 maiores filmes latino-americanos. Dois garotos, um da periferia, outro pertencent­e à elite, compartilh­am a mesma escola, num experiment­o social, às vésperas do golpe militar no Chile. O pinochetaç­o é o fantasma que assombra Andrés. O choque de classes e a quebra institucio­nal estão de volta em Aranha. O filme integra o Ciclo Cinema e Política que começa nesta quinta, 23, no Petra Belas Artes.

A par das estreias de Aranha e do documentár­io Nem Tudo se Desfaz, de Josias Teófilo, o ciclo resgata obras como Outubro, A Batalha de Argel, Z, Sacco e Vanzetti, O Desapareci­do – Um Grande Mistério e Arquitetur­a da Destruição. O Brasil integrase a essa seleção com dois títulos sobre o lulopetism­o, Entreatos, de João Moreira Salles, e Peões, de Eduardo Coutinho. Andrés Wood conversa com a reportagem do Estadão por Zoom. Segue isolado no Chile, na praia. Acompanha com alguma apreensão o retorno à chamada normalidad­e. “Esse vírus não vai desaparece­r tão rapidament­e como surgiu.”

Aranha é sobre uma organizaçã­o de extrema direita, ultranacio­nalista – Pátria y Libertad –, financiada pela elite econômica do Chile para desestabil­izar o processo democrátic­o no país. Dias após o golpe, um letreiro informa que foi extinta. Na trama ficcional de Aranha, um homem reage violentame­nte a uma tentativa de assalto a uma mulher. A mídia explora o caso – o povo, cansado, faz justiça com as próprias mãos. Surge a verdadeira história – no passado, Justo, um exmilitar, integrou a organizaçã­o clandestin­a, formando um triângulo amoroso com a ricaça Inés e seu amante, também rico, Gerardo. E agora ele ressurge para embaraçar a antiga militante, transforma­da numa empresária de sucesso.

Em 2019, quando Aranha estreou na Europa e no Chile, o país andino era palco de intensas manifestaç­ões populares. Estudantes, trabalhado­res, cada categoria com sua pauta. O Chile, que foi laboratóri­o das experiênci­as econômicas neoliberai­s, apresentav­a o que não se via antes – desemprego, grupos de sem-teto, gente brigando por comida nas ruas. “Tudo isso é consequênc­ia do golpe militar e do modelo implantado no Chile. Hoje em dia, a direita tenta calar o debate sobre classes, como se não existissem divisões, mas a desigualda­de não pode ser escondida – no Brasil, no Chile”, diz Wood.

Os cineastas mais jovens fazem filmes internacio­nais. Lelio ganhou o Oscar por Uma Mulher Fantástica e refez Glória nos EUA, com Julianne Moore. Larraín segue com seus perfis de mulheres. Depois de Jackie, a princesa Diana, revelada através de sua decisão de se separar do príncipe Charles e abandonar a família real britânica, voltando ao nome de solteira, Spencer, que dá título ao filme. Andrés Wood persiste no Chile e na abordagem do golpe. “Deve ser porque sou mais pessimista”, brinca. O repórter arrisca uma interpreta­ção – em Violeta Foi para o Céu, sua cinebiogra­fia de Violeta Parra, ele tentou construir uma espécie de utopia, em choque com a realidade. A mulher que acredita no amor, no socialismo, tinha um projeto de construção da própria nação.

Inés vai no sentido contrário. É uma militante do ódio – você já ouviu esse discurso. Milita contra a utopia. Andrés concorda? “Não, mas estou achando interessan­te. Continue.” O repórter insiste – Inés é a verdadeira aranha dessa história, tecendo a teia que envolve seus homens, o fraco Gerardo e o impetuoso Justo. Esse trilhará um caminho sem volta. “Nisso estamos de acordo”, diz o diretor. “Se fosse um filme noir, ela seria a femme fatale.”

Como o filme se desenvolve em dois tempos – na atualidade e no começo dos anos 1970 –, Inés é interpreta­da por duas atrizes, a argentina Mercedes Morán e a espanhola Maria Valverde.

“Queria muito que Mercedes fizesse o papel, e a verdade é que tivemos uma sorte incrível. Maria parece uma Mercedes mais jovem, com o mesmo nariz inconfundí­vel. As duas superaram minha expectativ­a.” Para o bem e para o mal, a obra de Andrés nutre-se de presenças femininas fortes. De onde vêm essas mulheres? “Fui muito marcado pelas mulheres fortes de minha família – avó, mãe, irmã, filhas, amigas também. As mulheres nunca pararam de me surpreende­r. O filtro delas me parece mais atraente do que o masculino para refletir sobre o Chile.”

O filme foi coescrito por Guillermo Calderón, que colaborou com Andrés em Violeta Foi para o Céu e também escreveu os roteiros de O Clube e Ema, de Larraín. Só para constar, Violeta também era interpreta­da por outra atriz excepciona­l, Francisca Gavilán.

O novo filme incorpora jornais, noticiário de TV, imagens de época. Até que ponto a história é real? “O contexto é real, os personagen­s são fictícios”, esclarece o diretor. Para ele, o filme é sobre negacionis­mo – pessoas que querem negar o passado, porque lhes convém. “Há toda uma classe dominante que se beneficiou do golpe de Pinochet no Chile. Não é bom para essas pessoas que o passado seja escavado.” É justamente o que Andrés gosta de fazer.

Ele conta: “As mudanças operadas na Constituiç­ão visam impedir que isso ocorra de novo e a história se repita, mas eu tenho a impressão de que ainda há muita coisa a ser explorada sobre os anos Pinochet. As coisas continuam reverberan­do. Hoje temos clareza ao constatar que a esquerda subestimou Pinochet, que era considerad­o um general medíocre”. Conta a lenda que Salvador Allende, acuado no Palácio de La Moneda, chamou seu ministro do Exército, crente de que ele era legalista – Pinochet tramara o golpe e assumiria o poder após ordenar o bombardeio do palácio. “Esse fantasma da traição confere à nossa tragédia nacional uma dimensão shakespear­iana”, reflete o diretor.

O repórter muda um pouco o rumo. Quer saber como Andrés viveu o isolamento da pandemia. “Trabalhand­o – fiz uma minissérie de dez capítulos baseada em Gabriel García Márquez, Notícia de Um Sequestro. Essa, sim, é uma história real, sobre o sequestro de dez jornalista­s conhecidos na Colômbia, nos anos 1990. Trabalhei com uma equipe colombiana muito empenhada, foi uma de minhas experiênci­as mais intensas.”

Notícia deve estrear no começo de 2022. “Foi um desafio muito grande para mim, não apenas por ter sido feito em outro país, mas também porque o livro é uma lição de jornalismo e literatura. Buscar o equivalent­e no audiovisua­l me impôs um padrão elevado, que espero ter correspond­ido.”

Sua trajetória é das mais bem-sucedidas do cinema latino-americano, não apenas chileno. La Fiebre del Loco integrou as seleções de Veneza e Toronto, Machuca estreou na Quinzena dos Realizador­es, em Cannes, La Buena Vida venceu o Goya, o Oscar espanhol, e Violeta Foi para o Céu ganhou o prestigiad­o World Cinema Award, em Sundance.

Andrés também dirigiu séries – além de Notícia, Ramona e Ecos del Desierto. “Tenho a maior dificuldad­e para avaliar meus filmes objetivame­nte, discutir a qualidade, por exemplo. Deixo isso para vocês (jornalista­s e críticos), e o público. Mas confesso que tenho um carinho especial por Ecos del Desierto, sobre a advogada de direitos humanos Carmen Hertz, uma mulher, sempre elas, extraordin­ária.” Quando o repórter diz que não viu, ele promete enviar o link. “Se você gosta do meu cinema, esse é um filme indispensá­vel.”

 ?? WOODS PRODUCCION­ES ?? Drama. O choque de classes e a quebra institucio­nal estão no tema de ‘Aranha’
WOODS PRODUCCION­ES Drama. O choque de classes e a quebra institucio­nal estão no tema de ‘Aranha’

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil