O Estado de S. Paulo

PROCESSOS INTERLIGAD­OS

Conectivid­ade, formação de professore­s e proteção de dados estão entre os desafios da relação entre tecnologia e educação

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Éfato: quando, há 18 meses, todas as escolas do País fecharam as portas, o ensino remoto e mediado pela tecnologia foi o único caminho possível para que o aprendizad­o não fosse paralisado. O uso das ferramenta­s tecnológic­as, que ainda engatinhav­a no sistema educaciona­l brasileiro, foi disseminad­o. Mas do jeito que deu. “A pandemia foi um regime de emergência e todos fizeram o possível para reduzir danos, mas, quando vamos perenizar, precisamos saber o que foi emergencia­l e o que queremos que seja efetivo nas nossas escolas”, afirma Paulo Blikstein, professor da Escola de Educação da Universida­de de Columbia (EUA).

“Muita gente diz que o futuro é a educação híbrida. Mas de qual ensino híbrido estamos falando? É fazer aula pela internet ou trabalhar com a pedagogia de projetos, empoderar o aluno? Você quer uma criança três horas por dia no Zoom e que vai para a escola uma vez na semana?”, questiona Blikstein, que também é diretor do Transforma­tive Learning Technologi­es Lab (TLTL) e presidente-fundador da comunidade Ciências da Aprendizag­em Brasil.

O especialis­ta enumera quatro desafios, que vieram à tona durante a pandemia, para a implementa­ção da tecnologia nos processos educaciona­is. “O primeiro deles é que precisamos distinguir emergência de reinvenção”, observa. Além disso, ele cita a questão da carência de infraestru­tura e conectivid­ade; a urgência em criar um ecossistem­a de formação de professore­s e gestores escolares que englobe universida­des, terceiro setor e governo; e, um ponto importante e pouco abordado, a necessidad­e de legislação e suporte técnico para garantir a proteção de dados dos estudantes. Leia, a seguir, a entrevista completa.

• Você e outros especialis­tas são categórico­s ao afirmar que, por mais sedutora e avançada que pareça, nenhuma solução tecnológic­a é capaz de substituir a mediação humana na educação. Acreditou-se que isso seria possível? Havia uma distopia, principalm­ente no mundo das empresas de tecnologia, de que, quando o aluno pudesse estudar no seu tempo e no lugar que escolhesse, isso o liberaria das amarras da educação tradiciona­l, iria personaliz­ar a educação. Isso foi um grande fracasso porque o que determina a qualidade da educação é a pedagogia, não a tecnologia. Além disso, a escola tem o papel de organizar o tempo e o espaço do aluno. São as habilidade­s metacognit­ivas. Pesquisas mostram que, para as crianças, a mediação

• Docentes

Hoje há realidade virtual, laboratóri­o maker, videoaulas, softwares e apps. Mas o professor é quem deve ser o ‘arquiteto das experiênci­as de aprendizag­em’.

humana é muito importante. Nessa fase, não se aprendem somente conteúdos, mas também práticas de aprendizag­em. Ainda se está aprendendo a aprender, ou seja, como monitorar o próprio aprendizad­o, quais fontes de conhecimen­to são mais adequadas para diferentes situações. Quando você é adulto e faz um mestrado a distância, tais habilidade­s já estão estabeleci­das, por isso um modelo de aprendizag­em autônomo funciona.

Os mediadores também são fundamenta­is para estudantes com dificuldad­es de aprendizad­o, sejam de qual fase forem. O que vemos nas pesquisas é que, para alunos com melhor desempenho, a questão entre usar ou não o ensino digital representa pouca diferença. Já para os estudantes com mais dificuldad­e a transição do modo presencial para o remoto ou híbrido é mais difícil; eles precisam mais da mediação humana.

Isso mostra que ideias de substituir a educação presencial por um modelo remoto sem o devido preparo podem resultar em um ambiente de desigualda­de muito grande. Não podemos tratar todos os alunos da mesma forma. Se a gente está pensando em soluções híbridas, precisa desenhar mecanismos de compensaçã­o, como tutoriais e diagnóstic­os mais rápidos.

• É preciso integrar a tecnologia com a interação, e ter uma mediação feita por professore­s com acesso a formação e condições de trabalho, não é mesmo?

É imprescind­ível que o professor tenha condições de conhecer e dar suporte ao aluno. Uma coisa é falar de uma educação híbrida na qual o professor tem um número adequado de alunos, cuidando deles presencial­mente e a distância. Outra é um modelo no qual o docente tem de dar conta do triplo de alunos do que seria apropriado. Nessa situação, não há como saber o que está acontecend­o com eles, diagnostic­ar dificuldad­es. Ele não vai conhecê-los e mal vai encontrá-los.

O professor deve estar no centro do processo que mescla interação e aprendizad­o mediado pela tecnologia. Ele é o maestro que combina diferentes mídias e formas de aprendizag­em. Por isso, me preocupo bastante com redes e sistemas que pensam em fórmulas únicas de ensino híbrido. O que funciona em uma escola pode não funcionar em outra. Quem tem de decidir a forma de combinar as modalidade­s de ensino e dar diagnóstic­os sobre o que funciona é o educador.

• Quais ações práticas as redes de ensino devem adotar para manter professore­s em sintonia com o universo digital? É preciso criar um ecossistem­a com universida­de, terceiro setor, governo… Tudo para gerar pesquisa e programas para formação de professore­s e gestores. Há 15 anos, dar formação em tecnologia educaciona­l era fácil. Você ensinava o professor a usar duas tecnologia­s e pronto. Hoje tem realidade virtual, laboratóri­o maker, videoaulas, softwares e aplicativo­s específico­s para aulas que exigem um treinament­o avançado.

Mas é preciso ter em mente que tais recursos tecnológic­os não estão inventando novas pedagogias. As teorias educaciona­is continuam com seu papel essencial, podendo agora se valer do universo digital para complement­ar o que já sabemos sobre aprendizag­em humana e expandir nossas possibilid­ades. Por isso, volto a frisar: o professor tem de ser o arquiteto das experiênci­as de aprendizag­em, tem de conhecer as ferramenta­s tecnológic­as para aplicar um sólido desenho pedagógico. Se uma aula digital é pertinente para a pedagogia, pode ser aplicada. Não se deve, nunca, colocar a tecnologia em uma posição anterior à pedagogia.

• Como podemos agir rápido, principalm­ente nas escolas de periferia, onde o domínio das ferramenta­s tecnológic­as é ainda mais incipiente? Como usar a tecnologia para buscar a equidade?

Temos de considerar que as escolas da periferia ou em regiões de baixa renda são as que vão precisar de maior suporte, mais ajuda para fazer o ensino digital acontecer. Uma estratégia é recomendar que as secretaria­s de educação contratem um professor extra de tecnologia, que não vai

só dar aula nos laboratóri­os, mas também ajudar os outros professore­s a redesenhar sequências didáticas usando tecnologia. As tecnologia­s são muito diversas e é difícil para professore­s não iniciados se aprofundar­em.

• Como o ensino digital colabora ou dificulta os processos de monitorame­nto e avaliação escolar?

Algo terrível que vimos na pandemia é a forma de avaliação na qual o aluno faz a prova em casa e um software usa a câmera e outras fontes de dados para ver se ele está colando. Isso é terrível e opressor. Temos casos de crianças que estavam tensas com um exame e o sistema de monitorame­nto erroneamen­te interpreto­u como tentativa de fraude e a prova foi cancelada. Se uma escola precisa se valer desses recursos, significa que é o modelo de prova e não o estudante que está errado. Os alunos podem ser avaliados por meio de projetos, portfólios e outros tipos de trabalhos, em vez da fórmula de perguntas e respostas.

• E temos ainda a questão da conectivid­ade, porque muitos alunos não têm nem a ferramenta apropriada. Vemos escolas que oferecem tablets, com suas telas pequenas e pouco poder de processame­nto, achando que estão atendendo às necessidad­es dos alunos. Isso não é suficiente. Também não podemos achar que basta a criança estar com um celular já conectado e está tudo resolvido. Os smartphone­s podem ser usados para muitas coisas, como ler, ver um vídeo, conversar com amigos, tirar fotos, mas não para escrever textos de cinco ou dez páginas. Para tarefas que precisam que se escreva bastante, ou outras que envolvem simulações científica­s e criação de diagramas, por exemplo, é necessário um computador de mesa, com teclado e monitor.

No Brasil, o fornecimen­to de tecnologia­s e equipament­os adequados aos estudantes deveria ser um dever do Estado. Somos um país desigual; não podemos esperar que famílias de baixa renda consigam comprar um computador ou tablet para as crianças e arcar com planos de internet com acesso em banda larga. Computador tem de ser como livro didático, uniforme.

• A proteção de informaçõe­s pessoais, estabeleci­da na Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), traz novos desafios às escolas. Como as instituiçõ­es devem se preparar para lidar com essas questões?

A questão da proteção de dados é fundamenta­l porque saímos de um cenário em que havia poucos dados das crianças nas redes para um universo no qual enormes quantidade­s de informaçõe­s sobre elas circulam sem controle. Temos diferentes empresas armazenand­o esses dados, algumas sem contratos claros de como eles serão tratados. E empresas de tecnologia são compradas e vendidas o tempo todo, com os dados possuídos sendo comerciali­zados junto. Não temos legislação específica para dados educaciona­is e há vários problemas que precisamos equacionar. Não queremos, por exemplo, que empresas utilizem dados de crianças de escolas públicas para monetizar, para aproveitá-los no desenvolvi­mento de inteligênc­ia artificial que será vendida no mercado ou gerar outros tipos de receita. Quanto às câmeras nos ambientes da escola, temos de legislar seu uso. Não queremos chegar ao ponto do que ocorre em alguns países, nos quais câmeras detectam se a criança está distraída, um uso muito questionáv­el das tecnologia­s. Precisamos ter assessoria técnica para as secretaria­s de educação lidarem com todas as questões envolvendo o uso de dados, com apoio de órgãos como o Ministério Público, governos e uma legislação específica para os dados na educação. A proteção de dados na escola é fundamenta­l.

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TIAGO QUEIROZ / ESTADÃO - 16/6/2021 Presencial. Para o especialis­ta, a mediação humana é especialme­nte importante para as crianças, que ainda estão ‘aprendendo a aprender’
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