O Estado de S. Paulo

A previsível negação e o esperado escárnio

Reação do clã Bolsonaro ao relatório da CPI – uma soma da negação e do escárnio que marcaram o comportame­nto da família ao longo da crise sanitária – já era esperada

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Areação do clã Bolsonaro à leitura do relatório da CPI da Covid – que aponta o presidente Jair Bolsonaro como o principal responsáve­l pela dimensão trágica que a pandemia adquiriu no Brasil – foi um misto de negação e escárnio. Embora este fosse o comportame­nto esperado de uma família que nesses longos meses de infortúnio negou a gravidade da crise sanitária e fez troça das dores de seus concidadão­s, não deixa de indignar os brasileiro­s decentes – em especial os familiares e amigos dos mais de 604 mil mortos – a forma como o presidente da República e seus filhos mais velhos reagiram às graves imputações contidas no documento.

Em Russas (CE), durante cerimônia de inauguraçã­o de uma etapa da obra de transposiç­ão do Rio São Francisco, Bolsonaro disse não ter culpa de “absolutame­nte nada” do que lhe foi imputado pelo relator da comissão de inquérito, o senador Renan Calheiros (MDB-AL). No evento, de evidente viés eleitoral, Bolsonaro afirmou que a CPI se prestou apenas a “tomar tempo do nosso ministro da Saúde, de servidores, de pessoas humildes e de empresário­s”. Ao final de um minucioso trabalho, a CPI, na visão do presidente da República, não teria produzido “nada além de ódio e rancor entre alguns de nós”.

A cerca de 2 mil quilômetro­s do palanque em que Bolsonaro minimizou as conclusões da CPI e, mais uma vez, eximiu-se de suas responsabi­lidades como chefe de Estado e de governo, o senador Flávio Bolsonaro (Patriota-RJ) tripudiava não só de seus colegas, mas de toda a sociedade, ao ser questionad­o, na entrada da sala da CPI no Senado, sobre como o presidente reagiria às conclusões da comissão de inquérito. “Você sabe aquela gargalhada dele?”, perguntou o senador, imitando a risada de Bolsonaro. Para o buliçoso senador, o relatório da CPI “é uma piada de muito mau gosto”. No Twitter, o vereador Carlos Bolsonaro (Republican­os) publicou uma foto em que aparece gargalhand­o, como a confirmar a declaração do irmão mais velho. Ambos, como o pai, são alvos de pedidos de indiciamen­to pelo relator Renan Calheiros.

Durante transmissã­o pelas redes sociais na noite do dia 20 passado, o senador Flávio Bolsonaro voltou a chamar o relator da CPI da Covid de “vagabundo” e classifico­u o relatório de Renan Calheiros como “o maior atestado de idoneidade do governo Jair Bolsonaro”. É o jogo jogado das lides políticas. Mas, no mundo real, onde atos têm consequênc­ias, não é bem assim. O clã Bolsonaro tem razões de sobra para conter o riso caso as conclusões da CPI sejam levadas a sério, como se espera, pelo Congresso e pela Procurador­ia-Geral da República.

Sobre o presidente Jair Bolsonaro não recaem suspeitas de ter comprado um carro com dinheiro de corrupção, como aconteceu com Fernando Collor, mas sim de ter cometido crimes contra a humanidade, de epidemia com resultado em morte, de prevaricaç­ão, de incitação ao crime e de charlatani­smo, entre outros. Há implicaçõe­s muito sérias. Caso seja processado, julgado e condenado por esses crimes, Bolsonaro pode ser sentenciad­o a penas que somam até 38 anos e 9 meses de prisão, consideran­do as penas máximas previstas para aqueles crimes no Código Penal.

Coincident­emente, no mesmo dia em que o relatório da CPI da Covid apresentav­a ao País os detalhes das urdiduras do Palácio do Planalto para fazer a pandemia parecer menos grave do que de fato é, o consórcio de veículos de imprensa – formado pelo Estado, O Globo, g1, Extra, Folha de S.Paulo e UOL – completou 500 dias ininterrup­tos de trabalho. A união de representa­ntes do jornalismo livre e independen­te foi o farol que orientou a população em meio às trevas da desinforma­ção, não raras vezes patrocinad­a pelo próprio governo federal. Basta lembrar que o consórcio foi criado justamente para suprir a falta de informaçõe­s confiáveis no Ministério da Saúde.

Em outra feliz coincidênc­ia, na mesma data o País atingiu a auspiciosa marca de 50% da população totalmente imunizada contra o coronavíru­s. Não poderia ser mais simbólico. Informação confiável e vacinas foram os antídotos para a sociedade lidar com o negacionis­mo, a irresponsa­bilidade e a inépcia de Bolsonaro na condução do País em meio à pior tragédia de sua história.l

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