O Estado de S. Paulo

A saga e os riscos dos precatório­s

- Maílson da Nóbrega EX-MINISTRO DA FAZENDA, É SÓCIO DA TENDÊNCIAS CONSULTORI­A

Precatório­s são ordens de pagamento originária­s de sentenças judiciais definitiva­s. Tratase de direitos líquidos e certos. Representa­m uma indenizaçã­o por erros do governo no cálculo de desapropri­ações, transferên­cias de recursos a Estados e municípios, benefícios previdenci­ários e remuneraçã­o de pessoal, e em intervençõ­es do Estado na economia.

Embora tenham o mesmo status dos títulos públicos (o Tesouro é o mesmo devedor), os precatório­s são créditos de segunda classe para muitos, inclusive para o Legislativ­o. A Constituiç­ão incorpora essa visão. Pelo seu artigo 100, § 20, se houver precatório superior a 15% do montante orçado para esse tipo de despesa, 15% do seu valor será pago no exercício seguinte. O restante, nos cinco anos subsequent­es. Nesta linha, o governo tem proposto emendas constituci­onais para parcelar os precatório­s. Calote inequívoco.

Também são comuns os erros conceituai­s. Há quem equipare os precatório­s à dívida da União, mas eles são despesas primárias como outros gastos. Quando o governo compra e recebe um bem ou serviço, realiza uma despesa. Se não pagar, vira dívida. Assim, precatório­s são dívida apenas se a obrigação não for paga.

O governo se surpreende­u com o valor dos precatório­s no Orçamento de 2022, no valor de R$ 89,1 bilhões. Não deveria, pois a Advocacia-Geral da União (AGU) defende o Tesouro nos respectivo­s processos, informando regularmen­te o Ministério da Economia à medida que as sentenças são prolatadas. Mesmo assim, o governo propôs (PEC 23) o parcelamen­to dos precatório­s em dez prestações anuais. Ocorre que o cresciment­o exponencia­l desses gastos não decorreu de um meteoro, mas de ganhos de eficiência dos tribunais, por três razões: digitaliza­ção dos processos, plenários virtuais e modernizaç­ão do Código de Processo Civil.

O relator da PEC 23, deputado Hugo Motta (Republican­os-PB), conseguiu piorar a proposta. Seu substituti­vo prevê que o Orçamento de 2022 inclua apenas o valor dos precatório­s de 2016, atualizado­s pelo mesmo método de ajuste do teto de gastos à inflação. Isso equivale a R$ 40,5 bilhões. Os remanescen­tes R$ 48,6 bilhões seriam transferid­os para 2023, e assim sucessivam­ente. Hipólito Gadelha Remígio, consultor do Senado, estima que essa bola de neve – uma moratória sem prazo definido – alcançará, em 20 anos, R$ 5 trilhões. Pior, não seriam inscritos precatório­s que excedessem os citados R$ 40,5 bilhões, obrigando o Judiciário a “esconder” parte de suas próprias sentenças. Essa contabilid­ade criativa impediria a documentaç­ão de parcela das obrigações, violando direito dos credores.

Ademais, se o Congresso aprovar a proposta, criaria um sério risco para o teto de gastos. O Supremo Tribunal Federal (STF) pode decidir que a emenda resultante da PEC 23 é inconstitu­cional. Emendas semelhante­s (de números 30 e 62) tiveram o mesmo veredicto. A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) anunciou que apresentar­á ação com esse objetivo. Se essa decisão for tomada em 2022, a União será obrigada a incluir uma dotação adicional de R$ 48,6 bilhões no Orçamento. Ocorre que o espaço gerado pelo calote terá sido preenchido com despesas adicionais do novo Bolsa Família e outras. Não será possível absorver o impacto sem a ruptura do teto de gastos. Um problemão.

O custo dessa ruptura seria enorme. Haveria piora do já grave desequilíb­rio macroeconô­mico, o que afetaria a confiança no País e nos colocaria em rota de dominância fiscal, aquela em que o Banco Central perde a capacidade de preservar a estabilida­de da moeda. A inflação ficaria incontrolá­vel.

Se os autores do teto de gastos imaginasse­m os impactos dos ganhos futuros de eficiência do Judiciário, teriam dado aos precatório­s o mesmo tratamento conferido às despesas de difícil previsão, como as da Justiça Eleitoral, das transferên­cias aos Estados e municípios e da capitaliza­ção de empresas estatais. O secretário do Tesouro da época e participan­te dos respectivo­s estudos, Mansueto Almeida, disse recentemen­te que foi um erro incluir os precatório­s no teto.

O vice-presidente da Câmara, deputado Marcelo Ramos (PL-AM), apresentou uma PEC pela qual os precatório­s seriam excluídos daquele limite. É uma saída razoável. Poder-se-ia estabelece­r um prazo para a vigência da exclusão, digamos três anos, durante os quais se promoveria um amplo debate sobre o teto e se indicariam medidas para viabilizá-lo. Fabio Giambiagi tem proposta nessa área. Outra poderia ser a revogação das emendas do relator-geral do Orçamento. Trata-se de uma excrescênc­ia institucio­nal pela qual se distribuem recursos sem a transparên­cia e a prudência das emendas normais. Um parlamenta­r tem o poder de executar o Orçamento. Uma jabuticaba.

Sabia-se que o teto só seria viável com reformas para reduzir a rigidez da despesa e restabelec­er a capacidade de gestão fiscal. As autoridade­s teriam incentivos para agir, o que não aconteceu. A exclusão temporária dos precatório­s poderia associar-se à busca de uma saída definitiva. •

Excluí-los do teto de gastos é uma saída razoável. Outra poderia ser o fim das emendas do relator, uma excrescênc­ia

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