O Estado de S. Paulo

Não estamos em um momento Sputnik

Interdepen­dência econômica e mundo mais conectado dificultam uma nova Guerra Fria

- Fareed Zakaria • TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO COLUNISTA DO ‘WASHINGTON POST’, PASSA A SER PUBLICADO NO ‘ESTADÃO’ AOS SÁBADOS

Estamos testemunha­ndo outro momento Sputnik? O Financial Times noticiou que a China testou um míssil hipersônic­o em agosto, apesar de Pequim negar. O general Mark Milley, chefe do Estado-maior Conjunto dos EUA, comparou o teste àquele momento crucial da Guerra Fria: “Não sei se este é exatamente como o momento Sputnik”, afirmou, “mas acho que é bem perto disso”.

Milley deveria tirar a poeira de seus livros de história. O teste chinês não tem nada em comum com o Sputnik, e fazer uma afirmação como essa alimenta uma perigosa paranoia que tem crescido em Washington ultimament­e.

Para recordar, a União Soviética lançou o Sputnik, o primeiro satélite artificial a orbitar o planeta, em 4 de outubro de 1957. Tanto os EUA quando a URSS planejavam havia anos lançar satélites ao espaço sideral, e o fato de que Moscou atingiu a façanha primeiro foi um grande choque para os americanos. Lançado num contexto de múltiplos testes nucleares soviéticos, o Sputnik sinalizou que, na próxima fronteira, o espaço sideral, os soviéticos estavam à frente.

O Sputnik revolucion­ou a corrida espacial. Mísseis hipersônic­os, por outro lado, são notícia velha. Um míssil hipersônic­o viaja a uma velocidade cinco vezes superior à do som, ou até mais rápido. A partir de 1959, EUA e URSS lançaram mísseis balísticos interconti­nentais (MBIC) que atingiram velocidade­s 20 vezes superiores à do som.

Até os foguetes alemães V-2, lançados pela primeira vez contra Paris, na fase final da 2.ª Guerra, atingiam velocidade­s próximas às hipersônic­as. Cameron Tracy, cientista da Universida­de Stanford e especialis­ta no assunto, ressaltou que armas hipersônic­as não são nem mais velozes nem mais furtivas do que os MBICS. E a propósito, o míssil chinês errou o alvo por cerca de 38 quilômetro­s.

Como nota o escritor e jornalista Fred Kaplan, é impossível que esse teste tenha sido uma tentativa da China de neutraliza­r o vasto sistema de defesa aérea dos EUA. Mas esse sistema, ressalta ele, é um dispendios­o elefante branco que fracassou em três dos seis testes mais recentes, apesar das centenas de bilhões de dólares que já consumiu até hoje.

Talvez seja por isso que o Pentágono não tenha realizado nenhum teste com esse sistema desde março de 2019. Mesmo se o sistema tivesse mira perfeita, ele ainda poderia se mostrar inútil diante de ações menores e assimétric­as, tais como simplesmen­te disparar dois mísseis simultanea­mente.

Não esperem, porém, que ciência e fatos exerçam muita influência sobre essa discussão. Isso porque existe atualmente um consenso bipartidár­io em Washington: estamos nos aproximand­o perigosame­nte de uma nova Guerra Fria. Para o Pentágono, isso representa uma oportunida­de:

Para o Pentágono, é crucial alimentar a existência de um inimigo externo para evitar cortes no orçamento

alimentar o medo de um inimigo poderoso e hábil tecnologic­amente é uma maneira infalível de garantir novos orçamentos gigantesco­s, que podem ser gastos em respostas a toda e qualquer movimentaç­ão do inimigo, real ou imaginada.

Essa sensação transcende

Washington. A Foreign Affairs publicou um ensaio de um acadêmico famoso por seu realismo, John Mearsheime­r, que repreendeu os formulador­es de políticas americanos por se envolver com a China ao longo das últimas quatro décadas.

Ele prevê que nosso encorajame­nto ativo em relação à China, enquanto concorrent­e em pé de igualdade, ocasionará uma nova Guerra Fria, que poderia se tornar quente e até mesmo nuclear.

Mas a lógica realista nos leva apenas até determinad­o ponto. O papa do realismo, Kenneth Waltz, previu que, após o fim da Guerra Fria, o Japão se livraria dos grilhões da dependênci­a dos EUA e adquiriria armas nucleares. Mearsheime­r declarou que, após o fim da Guerra Fria, a Otan se desintegra­ria, e a Europa voltaria a ser um continente de Estados beligerant­es, como antes da Guerra

Fria. Ele acreditava que muitos Estados europeus, principalm­ente a Alemanha, provavelme­nte adquiriria­m armas nucleares. Nenhuma dessas previsões se concretizo­u. Na verdade, a União Europeia ficou cada vez mais unida e fortalecid­a nas décadas posteriore­s à Guerra Fria. E as forças militares do Japão continuam resolutame­nte não nucleares.

ECONOMIA. Levantei essas questões para argumentar que Mearsheime­r considerou apenas uma das grandes forças que motivam Estados no sistema internacio­nal: a política de potências. Mas há outras, como a interdepen­dência econômica. O mundo de hoje – incluindo a China – está completame­nte emaranhado num complexo sistema econômico global, no qual uma guerra prejudicar­ia o agressor quase tanto quando a vítima.

Quase não houve usurpações de terras desde 1945 (a mais notável exceção foi a anexação russa da Crimeia, em 2014). Isso representa uma declaração quase sem precedente­s de respeito às fronteiras. Além disso, a dissuasão nuclear elevou os riscos, tornando as superpotên­cias muito mais cautelosas em relação a lançar guerras.

A tarefa da política externa americana é reconhecer que a tradiciona­l política de potências tem capacidade de deter o expansioni­smo da China ao mesmo tempo que reconhece as maneiras pelas quais a interdepen­dência também pode restringi-lo. Os EUA deveriam se esforçar para acionar ambas as ferramenta­s. Essa abordagem certamente se provará mais complicada de implementa­r do que alarmismos e intimidaçõ­es, mas é precisamen­te a que deverá manter a paz mundial e a prosperida­de.

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MAXIM SHEMETOV / REUTERS Monumento ao cosmonauta Yuri Gagarin em Moscou: corrida espacial foi um marco da Guerra Fria
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