O Estado de S. Paulo

O bonde da moral

- @danielmbar­ros Daniel Martins de Barros

Avida foi se tornando cada vez mais complicada conforme cresceu a complexida­de da sociedade. A teia de relações entre as pessoas e seus atos ganhou tantas imbricaçõe­s que mal nos damos conta do que isso significa.

Um dos resultados tem a ver com o que chamamos de ética. Nesses contextos modernos, a nossa intuição moral pré-histórica por vezes se depara com grandes dificuldad­es para diferencia­r o certo do errado.

Qualquer discussão, de proibição das drogas a obrigatori­edade de vacinas, está condenada a ser reduzida, no fim, a algo como “mas essa é minha opinião” (quando for civilizada e não terminar reduzida, no fim, a um bate-boca acabando com o jantar em família antes da sobremesa).

Não que seja inútil argumentar, bem ao contrário: só quando os argumentos são bons e a conversa respeitosa a gente consegue retirar do debate ideias preconcebi­das e as falácias; mas há tantas implicaçõe­s em cada decisão, tantas ramificaçõ­es das consequênc­ias dos nossos atos, que quase sempre é impossível encontrar uma “resposta certa”.

A partir dos anos 2000 um campo de estudos sobre isso – psicologia moral – apresentou grande desenvolvi­mento, lançando luz sobre como e por que diferencia­mos o certo do errado, o bom do mau, o ético do antiético. Um de seus experiment­os mentais ficou famoso: o dilema do bonde.

Imagine que um trem descontrol­ado irá matar cinco pessoas. Você está longe demais para ajudá-las, mas pode mexer numa alavanca que muda o trem de trilho, salvando suas vidas. O problema é que no outro trilho há uma pessoa, e ela acabará morta no lugar das cinco. Você puxaria a alavanca?

Esse cenário recebeu diversas modificaçõ­es, colocando pessoas conhecidas ou desconheci­das em um ou outro trilho, por vezes monitorand­o o cérebro dos voluntário­s, tudo para concluir que, bem, é complicado mesmo.

A ideia ganhou o mundo pop de tal forma que depois de aparecer em seriado de TV e vídeos no Youtube, ano passado virou um jogo de tabuleiro.

Em Trial by Trolley (editora Galápagos, 2021), os jogadores se revezam colocando mocinhos ou vilões nos trilhos (um casal de velhinhos apaixonado­s; uma pessoa que maltrata animais; assim por diante) e tentam convencer o condutor da vez – que muda a cada rodada – a mandar o trem para o trilho dos adversário­s.

No final, ganha o jogo quem salvou mais gente.

Sim, não é um exercício de argumentaç­ão sério e profundo como um debate na ONU. Mas dá uma ideia de como podem ser complicada­s as decisões morais num mundo tão complexo, e ainda garante boas risadas em grupo. •

Ao mexer numa alavanca, você salvaria cinco pessoas mas mataria uma. Eis o dilema

É PROFESSOR COLABORADO­R DO DEPARTAMEN­TO DE PSIQUIATRI­A DA FACULDADE DE MEDICINA DA USP

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