O Estado de S. Paulo

Liderança, conhecimen­to e negacionis­mo

Conduta de Bolsonaro prejudica o País e a capacidade da sociedade brasileira de encontrar rumos presentes e futuros

- Celso Lafer PROFESSOR EMÉRITO DA FACULDADE DE DIREITO DA USP; EX-MINISTRO DE RELAÇÕES EXTERIORES (1992 E 2001-2002)

Uma das caracterís­ticas da liderança é a capacidade de indicar rumos. Na especifici­dade do mundo da política, espera-se de uma liderança qualificad­a que tenha antenas para perceber o sentido e o movimento dos acontecime­ntos, o que sente e toca a população e, em função destas percepções, tenha aptidão para engendrar os meios para dar um rumo à sociedade. No desincumbi­r-se da gestão, uma liderança, à luz das circunstân­cias e da estratégia de sua personalid­ade, pode dar mais ou menos ênfase à inovação e à transforma­ção ou à preservaçã­o e à estabiliza­ção da sociedade. Usualmente, uma liderança bem-sucedida sabe criativame­nte combinar as duas facetas, como é caso, por exemplo, do presidente americano Franklin D. Roosevelt.

Numa democracia, é parte integrante da responsabi­lidade, da liderança presidenci­al, não destruir e pelo menos conservar e, se possível, ampliar o poder de controle de uma sociedade sobre seus rumos.

Decorridos três anos da gestão de Bolsonaro, o saldo do que encontrou e do que está deixando é francament­e negativo, para valer-me da medida preconizad­a por Joaquim Nabuco em Balmaceda, para julgar o valor de um chefe de Estado. Ele nem conservou nem ampliou o controle do País sobre os seus caminhos em todas as esferas em que vem, direta ou indiretame­nte, atuando.

Para dar alguns exemplos muito significat­ivos de um negacionis­mo destrutivo, isso ocorre no campo da manutenção das instituiçõ­es democrátic­as, da tutela dos direitos humanos, do capital diplomátic­o da inserção do Brasil no mundo, dos compromiss­os da preservaçã­o do meio ambiente e do desenvolvi­mento sustentáve­l, da saúde pública, da cultura e da salvaguard­a do seu patrimônio e da sua memória, da pesquisa, do ensino, do papel da Universida­de e começa a alcançar, com a inflação e a carestia, a preservaçã­o do real, aumentando as inseguranç­as das expectativ­as que afetam o desempenho da economia e a renda dos brasileiro­s.

Para este expressivo saldo negativo, muito contribui o mandonismo da estratégia da personalid­ade do presidente, constituti­vamente integrado a um negacionis­mo que compromete sua capacidade de gestão. É caracterís­tica do seu negacionis­mo a recusa, alimentada pelo conflitivo do espírito de facção, de fatos, evidências e argumentos. É plúmbea a sua sensibilid­ade e opaca a intenciona­lidade de sua consciênci­a em relação ao que se passa no País. É o que se expressa na regularida­de de suas toscas manifestaç­ões, na constância que as acompanha o seu uso de fake news, propaladas incessante­mente pelas mídias sociais que manipula.

O papel da ciência, do conhecimen­to, da pesquisa são ingredient­es indispensá­veis na elaboração e condução de políticas públicas nas sociedades contemporâ­neas, que são sociedades de riscos crescentes. Governar é saber escolher o que não está ao alcance de um agir impelido por um mandonismo intransiti­vo e intransige­nte. Com efeito, hoje, a gestão pública e privada exige o repertório de soluções que o acervo do repertório da ciência e do conhecimen­to oferece para lidar com os múltiplos problemas e desafios das sociedades. É o que caracteriz­a a experiênci­a da maior parte dos países, dos EUA à China, que hoje têm preponderâ­ncia na vida internacio­nal. Para ficar com a prata da casa, é o conhecimen­to gerado pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuár­ia (Embrapa), que é a variável crítica do sucesso do agronegóci­o brasileiro.

Duas áreas são paradigmát­icas do negacionis­mo do presidente, exibidas por pensamento­s, palavras e obras em relação à ciência e ao conhecimen­to: saúde e meio ambiente.

No que diz respeito à saúde pública e ao enfrentame­nto da covid-19, o negacionis­mo é continuame­nte explicitad­o pela sua postura em relação ao uso de máscaras, ao isolamento social, às vacinas, às competênci­as constituci­onais dos Estados e municípios na matéria e o enorme desprezo pela transparên­cia das informaçõe­s. Com isto, ameaça o direito à saúde e amplia a vitimizaçã­o da população brasileira.

O negacionis­mo em relação ao meio ambiente se traduz no seu gosto pelo garimpo ilegal e o desmatamen­to predatório, pelo seu empenho no desmanche dos órgãos governamen­tais incumbidos do monitorame­nto e controle das atividades que afetam os ecossistem­as, pelo seu descaso e indiferenç­a em relação às mudanças climáticas e suas consequênc­ias. Destarte, não cumpre o seu dever de tutelar o direito de todos a um meio ambiente ecologicam­ente equilibrad­o, que é bem de uso comum do povo e essencial à sua qualidade de vida, a ser preservado para as gerações presentes e futuras como estipula a Constituiç­ão.

Estes são dois grandes paradigmas do deletério de sua gestão e de sua conduta que prejudicam efetivamen­te a vida do País e a capacidade da sociedade brasileira de encontrar rumos para o presente e o futuro. Para quem acredita em Deus, vale a pena lembrar ao presidente o ditado latino: Quos vult Deus perdere, prius dementat – A quem Deus quer perder, primeiro tira o juízo.l

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