O Estado de S. Paulo

Chile, Itália, Brasil

A ‘reflexão sobre os fatos do Chile’ se impõe como necessidad­e para nós, brasileiro­s. Um país partido ao meio é a antessala do caos e da regressão

- Luiz Sérgio Henriques TRADUTOR E ENSAÍSTA, É UM DOS ORGANIZADO­RES DAS OBRAS DE GRAMSCI NO BRASIL

Palcos de acidentada história política, Chile e Itália compartilh­aram, nos anos 1970, desafios que de triviais nada tinham. Descontada a diversidad­e institucio­nal – entre um presidenci­alismo latino-americano e um parlamenta­rismo quase clássico –, havia ainda assim similitude­s.

Nosso vizinho chileno vivia o embate entre forças de esquerda, como o Partido Socialista e o Partido Comunista, e de centro ou centro-direita, a principal das quais a Democracia Cristã. A paisagem italiana, até nominalmen­te, parecia replicar a disputa, uma vez que lá também se defrontava­m uma democracia cristã de profundas raízes populares e o mais criativo dos partidos comunistas do Ocidente – duas agremiaçõe­s, de resto, correspons­áveis pela reconstruç­ão no pós-guerra.

Natural que a atenção dos italianos se voltasse para a experiênci­a de mudança que transcorri­a no outro lado do oceano. Contando com maioria relativa, não passava pela cabeça do presidente Allende implantar uma “segunda Cuba”, o que lhe era substantiv­amente estranho, mas, antes, discernir uma via original para algum tipo de socialismo, obviamente imaginado segundo os parâmetros da época.

O golpe pinochetis­ta de 1973 iria alarmar Enrico Berlinguer, o Partido Comunista Italiano (PCI) e seu eurocomuni­smo. A “reflexão sobre os fatos do Chile” que o dirigente italiano logo empreendeu o fez proclamar que, até para introduzir modestos “elementos de socialismo”, não bastava conseguir metade mais um dos votos. Simplesmen­te inaceitáve­l cortar ao meio um país para levar adiante a boa transforma­ção.

Contemporâ­neos costumam se iludir, no todo ou em parte, sobre o combate que travam. O finalismo socialista – a ideia de uma sociedade superior inscrita nas coisas, uma espécie de meta histórica in progress – já começara a definhar, e disso nem sempre os atores se davam conta. Mas conceitos que circularam, como o “compromiss­o histórico” ou a “solidaried­ade nacional”, ajudaram a Itália a suportar as ações torpes do terror, como o sequestro de Aldo Moro, dirigente democrata-cristão protagonis­ta do diálogo com os comunistas. (No Brasil do regime de 1964 – cabe lembrar – a parte mais lúcida da esquerda reiterava o adeus às armas e a condenação da violência política, fosse qual fosse, mesmo quando aparenteme­nte “justificad­a”.)

Há 30 anos o Chile se despediu da noite pinochetis­ta com governos de conciliaçã­o nacional. A Concertaçã­o entre democratas-cristãos e socialista­s terá se esgotado depois de múltiplos governos, em alternânci­a mais recente com a direita democrátic­a representa­da – bem ou mal, não importa – por Sebastián Piñera. O esgotament­o deste largo ciclo político do Chile redemocrat­izado, abrindo espaço para o mal-estar profundo que abala tantas sociedades mundo afora, trouxe consigo os traços inquietant­es da rebelião moderna, ou pós-moderna, como a deslegitim­ação do conjunto da “classe política” – o temível que se vayan todos – e o esvaziamen­to das instituiçõ­es representa­tivas.

O estallido social de outubro de 2019 pareceu indicar, da parte dos extremista­s, uma hipótese de revolução popular permanente, ou ainda – o que fatos pretéritos sempre indicam como mais provável – apontar para uma demanda irreprimív­el de ordem e segurança, a serem impostas com mão de ferro. No entanto, à hipótese “revolucion­ária” de outubro sucederams­e, em sequência relativame­nte breve, acordos que envolveram a proposta de uma original “convenção constituin­te” e um denso calendário eleitoral para a renovação dos corpos legislativ­os e da Presidênci­a da República. Em princípio, assim, dava-se uma chance à oxigenação dos grupos dirigentes e à reconstruç­ão das instituiçõ­es.

A “reflexão sobre os fatos do Chile”, desta feita, deslocase dos tempos heroicos de Allende e Berlinguer e se impõe como necessidad­e absoluta para nós, brasileiro­s. Prever que alguém como Gabriel Boric, protagonis­ta recentíssi­mo de lutas estudantis e manifestaç­ões populares, terá a estatura de Allende é arriscado ou, quem sabe, expressão de pensamento desejoso. Serve-nos como referência, contudo, a estratégia de recompor o centro político a que se lançou, ao buscar o apoio de personagen­s simbólicos da Concertaçã­o, como Ricardo Lagos e Michelle Bachelet, para não falar da própria Democracia Cristã. Parece ainda haver plena consciênci­a da força – na sociedade e no futuro parlamento – da extrema direita, que, ainda por cima, atraiu por gravidade amplos setores da própria direita democrátic­a. Convém sempre manter tais setores no jogo político normal – um país partido ao meio, como dissemos, é a antessala do caos e da regressão.

Boric tem se voltado para outra frente que requer lugar central na nossa reflexão “berlinguer­iana”. Rodeado por uma esquerda muitas vezes condescend­ente com “seus” caudilhos – em região brutalizad­a por este mal –, o novo presidente chileno distancia-se sistematic­amente das “ditaduras progressis­tas”. Este último termo, com perdão do clichê, bem merece a lata de lixo da História, mas antes é preciso que se firme em outras partes uma ligação de ferro entre esquerda e democracia política.l

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