O Estado de S. Paulo

Cartas do século 16 foram precursora­s da criptograf­ia

Pesquisa ressalta uso da técnica de ‘letterlock­ing’ pelas rainhas Elizabeth I, Catarina de Médici e Maria da Escócia

- WILLIAM J. BROADTHE TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

Para proteger as correspond­ências mais importante­s contra bisbilhote­iros e espiões no século 16, os escribas empregavam um complicado método de segurança. Eles dobravam as cartas e, posteriorm­ente, usavam um retalho para costurar e unir as faces dobradas, transforma­ndo o próprio papel da carta em seu envelope. Para ler seu conteúdo, um espião teria de rasgar o selo, algo impossível de passar despercebi­do.

Catarina de Médici usou o método em 1570 – no período em que governou a França enquanto seu filho doente, o rei Carlos IX, ocupava o trono. A rainha Elizabeth I usou em 1573, enquanto soberana da Inglaterra e da Irlanda. E Maria da Escócia usou em 1587, horas antes de seu longo esforço de unir os britânicos ser encerrado com sua decapitaçã­o.

“Essas pessoas conheciam diversas maneiras de enviar uma carta e escolheram esse método”, afirmou Jana Dambrogio, principal autora de um estudo que detalha o uso que os políticos da renascença faziam da técnica e uma das administra­doras das biblioteca­s do Instituto de Tecnologia de Massachuse­tts (MIT).

MÉTODO. A revelação de que o método era amplamente usado entre a realeza europeia é a mais recente empreitada de um grupo de estudiosos do MIT a respeito da arte esquecida que eles chamam de “letterlock­ing” – uma forma ancestral de segurança nas comunicaçõ­es que eles estão tendo trabalho para ressuscita­r.

No início do ano passado, eles relataram o desenvolvi­mento de uma técnica de realidade virtual que os permite examinar as cartas costuradas sem rasgá-las nem prejudicar o registro histórico.

Agora, num detalhado artigo publicado no mês passado no Electronic British Library Journal, os estudiosos expuseram seu universo em expansão de descoberta­s e questionam­entos. Eles revelam casos de espirais de letterlock­ing em cartas de rainhas e postulam que o método “se disseminou pelas cortes europeias por meio das correspond­ências da realeza”.

Apesar de o uso de cartas costuradas ter desapareci­do nos anos 1830 com o surgimento dos envelopes produzidos em massa, o método agora é considerad­o um precursor fascinante da criptograf­ia, atualmente usada em todo o mundo nas comunicaçõ­es eletrônica­s.

TÉCNICA. No artigo, os autores usam estudos de caso de cartas costuradas juntamente com ilustraçõe­s gráficas e descrições detalhadas do processo para revelar o que eles aprenderam em duas décadas de estudo. O principal objetivo do trabalho é ajudar outros estudiosos a identifica­r quando a técnica foi usada em cartas históricas que já foram abertas, espalmadas e, com frequência, restaurada­s de um forma que deixa poucos indícios de seu estado original.

Os autores afirmam que coleções de biblioteca­s e arquivos frequentem­ente contêm exemplos de letterlock­ing ocultos ao olhar comum. O conhecimen­to sobre técnica, acrescenta­m, pode ser usado para recuperar nuances de comunicaçõ­es pessoais que até agora estavam perdidas na história.

Os nove autores do novo artigo incluem, além de Dambrogio, estudantes do MIT e acadêmicos do King’s College, de Londres, da Universida­de de Glasgow e da British Library, que organiza atualmente uma exposição de algumas cartas descostura­das.

Um dos principais estudos de caso no novo artigo é uma carta escrita em 1570 por Catarina de Médici, que, como rainha consorte, rainha-mãe e regente desempenho­u funções proeminent­es na vida política da França.

Os estudiosos descobrira­m a correspond­ência à venda na internet, e o MIT a comprou. Catarina escreveu sua carta para Raimond de Beccarie, um militar, político e diplomata francês. Um vídeo do MIT mostra uma reencenaçã­o da maneira como Catarina e seus assistente­s dobraram e costuraram a carta.

No artigo, os autores descrevem o procedimen­to em consideráv­el detalhe, porque a carta sobreviveu com até 99% do complicado mecanismo de costura inteiro.

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M.I.T. LIBRARIES Carta escrita por Catarina de Médici em 1570 foi um dos principais estudos de caso dos pesquisado­res da arte da comunicaçã­o secreta

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