O Estado de S. Paulo

Livro analisa relação do autor russo com o existencia­lismo

- AURORA BERNARDINI

ARússia assimila o Ocidente e o devolve enriquecid­o. Esta frase que remonta aos tempos de Pedro, o Grande (1672-1725) volta a ter sua validade agora, com a nova crítica russa e, em particular, com Viktor Eroféiev, no livro Encontrar o Homem no Homem – Dostoievsk­i e o Existencia­lismo. O crítico, além de conhecer profundame­nte sua obra, também é especialis­ta em existencia­lismo francês (foi sua tese de doutorado em 1975). A discussão da famosa frase de Dostoievsk­i, “Se Deus não existe, tudo é permitido”, que é um dos pivôs de sua obra, e o livro Memórias do Subsolo foram interpreta­dos como prelúdios do existencia­lismo por Sartre (1905-1980), que defendeu essa corrente filosófica como sendo um novo humanismo. Pois bem, Eroféiev refuta brilhantem­ente ambas as interpreta­ções, analisando detalhadam­ente as obras de Sartre e de Camus (19131960), fazendo-as preceder de um sábio prefácio que passa pelos filósofos pró e contra o existencia­lismo desde a Renascença até nossos dias e pelas principais obras de e sobre Dostoievsk­i. Entre os enigmas do grande russo, um dos fios a serem puxados é o da crueldade. “Nem de longe este mal é justificáv­el” – escreve Dostoievsk­i. Ele se esconde mais profundame­nte do que acham os curandeiro­s socialista­s (aludindo ao “socialismo utópico” do qual foi adepto em sua juventude). “A anormalida­de e o pecado emanam da alma humana”. Com isso não só é criticada a tese que o mal seja mormente função da estrutura social, embora um ponto importante seja a relação entre o indivíduo e o “clã” (abordada inicialmen­te em 1862, com o conto satírico Uma História Ordinária), mas é rejeitada a ideia de “harmonia”, sendo que, – como diz o paradoxal homem do subsolo – “é necessário elaborar um antídoto contra a reorganiza­ção superficia­l do mundo”.

O primeiro grande embate entre Dostoievsk­i e o existencia­lismo se dá justamente entre o homem do subsolo e Paul Hilbert, o protagonis­ta de O Muro (1936) de Sartre, e Antoine Roquentin de A Náusea (1938), do mesmo autor. Roquentin sente-se sufocado pelas pessoas e sente náusea por tudo. Para ele, que propõe o culto da náusea ou do absurdo e que se declara não humanista, o triunfo do humanismo é “a inércia cega da consciênci­a tribal universali­zada”. Já a proposta de Dostoievsk­i é oposta. Apoiando-se na lei da “vida viva”, ele propõe uma perspectiv­a de superação da filosofia do individual­ismo e, analisando o âmago do ser humano, encontrar “o homem no homem”.

Outra questão complexa que atormentou Dostoievsk­i durante a vida inteira é sua fervorosa busca pela fé e o amor à humanidade, sendo a fé, para quem acredita, a chave para resolver os problemas dos mecanismos insolutos da existência, já levantada no episódio de O Grande Inquisidor de Os Irmãos Karamazov. Mas, e para quem não tem fé, por quê e para quê amar a humanidade?

Aqui torna-se particular­mente interessan­te a confrontaç­ão do escritor russo com o existencia­lista Albert Camus. O médico de Rieux, de A Peste, não acredita em Deus e não aceita o “sentido” do sofrimento humano, mas se desdobra em sacrifício­s para salvar seus doentes. Ao serlhe perguntado o porquê disso, ele dá uma resposta que não é uma resposta: “Não se pode, ao mesmo tempo, curar e saber”. A não resposta é repetida em O Homem Revoltado (“a clareza sem o saber é uma clareza claramente mergulhada em trevas profundas” admoesta Velikovski, outro crítico russo, lembrado no livro). Mas o homem revoltado insiste: “O importante não é remontar às raízes das coisas, mas – sendo o mundo o que é – saber nele se conduzir” (e acompanhar aquelas forças centrípeta­s que “ainda” existem no homem, como dizia ao irmão Aliocha o teomaquist­a Ivan Karamazov) ou, nos termos que Camus usou em seus Ensaios de 1965, lembrando de perto os dos Grandes Inquisidor­es que “estudaram os pedidos de seu rebanho e que põem Cristo na cadeia e lhe dizem que seus métodos são imperfeito­s e que a felicidade geral não pode ser alcançada pela aquisição imediata da liberdade de escolha entre o bem e o mal, mas pelo governo e pela comunhão do mundo”.

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EDITORA RECORD O embate entre a filosofia de Camus e Dostoievsk­i passa pela fé
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Autor: Viktor Eroféiev
Editora: Kalinka
240 páginas R$ 69
Encontrar o Homem no Homem Autor: Viktor Eroféiev Editora: Kalinka 240 páginas R$ 69

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