O Estado de S. Paulo

Polêmico ‘Sinhás Pretas da Bahia’ corrige a História

Livro de Antonio Risério provocou discussão ao falar de ex-escravas que usavam joias e tinham escravas

- JOSÉ NÊUMANNE

As Sinhás Pretas da Bahia: Suas Escravas,

Suas Joias. Este é o título do último livro do antropólog­o, historiado­r e poeta Antonio Risério (Editora Topbooks, 250 pp., R$ 64,90) e o estranhame­nto começa aí. Sinhás pretas? Sinhá, diminutivo carinhoso pelo qual eram tratadas senhoras de escravos na Colônia e no Império, pode ser dado a afro-brasileira­s? Ex-escravas ou suas descendent­es usavam vestes ricas e joias reluzentes e possuíam escravas? O fascínio de tal “esquisitic­e” histórica, contudo, não deve por em dúvida a qualidade e o valor da obra.

A saga parte da constataçã­o real de que a elite econômica da primeira capital do Brasil era constituíd­a, em primeiro lugar, por homens brancos proprietár­ios ou capitalist­as, cujas fortunas eram constituíd­as por posse de imóveis, escravos e dinheiro. Esses varões ricos eram seguidos em riqueza por damas negras, também proprietár­ias de imóveis, escravas (os do sexo masculino não dispunham das habilidade­s necessária­s para executar serviços devidos a suas senhoras) e exibiam vestes, joias, e moeda sonante.

Risério não baseou sua narração em fantasias ou mistérios, mas em pesquisa. O historiado­r registrou, na Nota do Autor, suas fontes primárias. Ele reconheceu, de saída, sua dívida a Heloísa Alberto Torres, cuja obra Alguns Aspectos

da Indumentár­ia da Crioula

Baiana foi “apresentad­a em 1950 ao concurso para provimento da cátedra de antropolog­ia e etnografia da Faculdade Nacional de Filosofia da Universida­de do Brasil”. Não escondeu também ter sido guiado pela “luz realmente nova sobre o candomblé” gerada por Lisa Earl Castillo e Nicolau Parés. A obra deles lhe chegou pelas mãos da arquiteta-cineasta Silvana Oliveiri, por Zeno Millet, neto da ialorixá Meninha do Gantois, e Babá Eté Otum, no terreiro do Gantois. De igual forma, são citados em reconhecim­ento Ruth Landes, Pierre Verger e Oju Obá, tido pelo autor como um dos “pais fundadores” da antropolog­ia visual.

CITAÇÕES. O próprio corpo do texto, aliás, incorpora citações de autores celebrados, em obediência a seu critério por excelência: a multidisci­plinaridad­e. Ali o leitor vislumbra pérolas da genialidad­e sociológic­a do pernambuca­no Gilberto Freyre, autor de Casa

Grande e Senzala, e a irresistív­el narrativa romanesca de Memórias de um Sargento de Milícias, do carioquíss­imo Manuel Antônio de Almeida. Estilista de mão leve e raciocínio ágil, Risério não se faz de rogado em dar voz em citações de destaque a mestres da ficção e do ensaio. Sem se deixar afundar pela petulância da parolagem acadêmica e desnecessá­rias notas de pé de página, exigidas pelos padrões técnicos de escrita da produção universitá­ria.

E, se não impõe o pedantismo professora­l ao leitor em busca da leveza de qualidade, Risério também não escorrega no facilitári­o, enfrentand­o os relatos com realismo desassombr­ado. Muitas de suas personagen­s, que compraram cartas de alforria de alto valor com o suor do próprio corpo, enriquecer­am na miríade de terreiros de candomblé, dos quais cita nomes e créditos. São contadas, ainda, sagas familiares nascidas de relações afetivas negociadas. A prostituiç­ão não é negligenci­ada na poupança de bens de capital próprios da escravatur­a, em que a procriação tinha valor de mercado. Risério escapa facilmente das trampas de tentar reduzir a relação carnal ao estupro da escrava pelo senhor, que tendem a transforma­r esse monopólio da violência numa forma vil de racismo estrutural explícito.

DUELOS. Não é à toa que a nova obra do escritor baiano tenha sido submetida à lapidação intelectua­l no meio universitá­rio, em que castas de cátedras tentam impor dominação feudal. O autor não se esconde em subterfúgi­os aleivosos, como deixou claro no título de um livro anterior: Sobre o Relativism­o

Pós-Moderno e a Fantasia Fascista da Esquerda Identitári­a.

A leitura de Sinhás Pretas não comporta adesões de bandos empenhados em duelos ideológico­s, que em nenhum momento são propostos. As negras forras ricas não são satanizada­s na narrativa simples de seus êxitos financeiro­s pessoais como titãs da economia, nem diabólicas capitãs do mato a serviço de grandes proprietár­ios brancos, explorador­es do suor do semelhante. Elas são tratadas apenas como um dado da realidade comezinha de uma economia escravista, na qual mulheres e homens são usados como modos de produção agrária, doméstica e urbana (os “escravos de ganho” são personagen­s importante­s no relato de Risério). Da mesma forma, não são compreendi­das como se vivessem na sociedade contemporâ­nea, que não aceita a servidão, sob nenhum aspecto. De cada tempo, seus costumes.l

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TOPBOOKS Tema da escrava alforriada que ficou rica e poderosa como as sinhás brancas inspirou filme e peça
 ?? ?? Sinhas Pretas da Bahia
Autor: Antonio Risério
Editora: Topbooks
252 páginas
Livro:
R$ 64,90
R$ 24,99 (Kindle/e-book)
Sinhas Pretas da Bahia Autor: Antonio Risério Editora: Topbooks 252 páginas Livro: R$ 64,90 R$ 24,99 (Kindle/e-book)

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