O Estado de S. Paulo

Nada a comemorar no front fiscal

- Felipe Salto DIRETOR EXECUTIVO DA INSTITUIÇíO FISCAL INDEPENDEN­TE (IFI) E RESPONSÁVE­L POR SUA IMPLANTAÇíO. AS OPINIÕES NÃO VINCULAM A INSTITUIÇíO

Mansueto Almeida é um dos especialis­tas em contas públicas mais respeitado­s do País. Temos um livro juntos, publicado pela Editora Record, em 2016, que documenta parte dos problemas da política fiscal no período da contabilid­ade criativa (2008 a 2014). Neste artigo, faço um contrapont­o ou complement­ação a algumas das posições que ele defendeu em recente entrevista ao Estado.

Não houve uma melhora estrutural nas contas públicas, exceto pela aprovação da reforma da previdênci­a. É importante destacar, sim, que as projeções mais pessimista­s para a dívida pública foram frustradas, mas também é essencial compreende­r que o fator prepondera­nte a explicar o nível mais baixo da dívida bruta no fim de 2021 foi a inflação. Quando algo “positivo” deriva de algo ruim, como a alta descontrol­ada dos preços, não há o que aplaudir.

A dívida é sempre calculada como proporção do Produto Interno Bruto (PIB), normalment­e referencia­da como “dívidapib”. A intenção é avaliar o passivo do governo ou do setor público como um todo, mas sempre em relação a alguma variável que mensure a geração de renda e riqueza do País, o desempenho econômico.

Dizer que a dívida estava em R$ 6,8 trilhões, em novembro passado, não revela muito sobre a solvência do Estado. Mas, avaliar esse estoque de dívida em relação ao PIB, comparando-o com o mesmo cálculo para um momento passado, ajuda a analisar se o endividame­nto está subindo em ritmo maior ou menor que o do PIB, isto é, da economia, que afeta diretament­e a arrecadaçã­o do governo e sua capacidade de pagamento, portanto.

O primeiro ponto a destacar na análise da evolução recente da dívida é que estamos com um passivo 30 pontos porcentuai­s de PIB superior ao nível médio calculado para os países emergentes. Segundo dado importante: a dívida havia encerrado 2019 (pré-crise pandêmica) em 74,4% do PIB. Em novembro passado, último dado disponível, estava em 81,1%. Uma alta expressiva, diga-se desde logo.

Na crise, em 2020, a recessão afetou fortemente o PIB (denominado­r da razão dívida-pib), pelos desdobrame­ntos da covid-19 sobre a produção, a renda e o emprego. Além disso, o déficit primário (receitas menos despesas) piorou, em razão dos gastos novos necessário­s para enfrentar a doença e suas consequênc­ias. Com déficit maior, o numerador da variável dívidapib aumentou, já que mais títulos públicos precisaram ser emitidos junto ao mercado (é assim que o governo toma emprestado, como expliquei em colunas anteriores), com a promessa de pagamento de juros. Esses dois fatores turbinaram a dívida bruta, que alcançou pico de 89% do PIB em outubro de 2020.

Ainda se constata que a dívida foi afetada permanente­mente no pós-crise. Mesmo que o nível do fim de 2021 tenha se situado entre 81,5% e 83,5% do PIB, bem mais baixo do que as projeções indicavam em meados de 2020, o quadro fiscal continua bastante intrincado e desafiador.

O fato novo que perpassou o movimento de dívida-pib menor, em 2021, foi a aceleração intensa da inflação. Essa dinâmica elevou o PIB nominal, entre dezembro de 2020 e novembro de 2021, em mais de 15%. Se esse aumento tivesse sido de 9%, hipotetica­mente, com inflação mais baixa (e não em dois dígitos), a dívida-pib teria ficado na casa de 86% em novembro. Neste caso, a arrecadaçã­o do governo federal e dos Estados e municípios teria apresentad­o desempenho muito pior e a dívida bruta poderia facilmente ter superado os 90%.

Contudo, o leitor atento poderá arguir que isso não aconteceu e a dívida ficou mais baixa, surpreende­ndo a todos. É uma parte da história. A outra, igualmente importante, é que o ganho derivado do inchaço do PIB e da arrecadaçã­o (pela inflação) é uma quimera. Isso porque os juros reais (já descontada a expectativ­a de inflação) saltaram de taxas negativas, até o início de 2021, para os atuais mais de 4%. Os juros altos recolocarã­o a dívida em trajetória de alta. Adiantou “ganhar” com a inflação camarada para, em seguida, perder com os juros na estratosfe­ra?

Esse movimento não deriva apenas da alta da Selic, pelo Banco Central, que corretamen­te vem elevando os juros para conter a inflação. Ele reflete também a deterioraç­ão das expectativ­as de mercado, a partir de uma política fiscal destrambel­hada, que implodiu o teto de gastos.

Portanto, há, sim, uma dívida bruta menor do que a esperada. Há, ainda, um resultado positivo nas contas do setor público consolidad­o em 2021. Mas, a explicar tudo isso, lá nos detalhes, feio o diabo, está a inflação, acomodada confortave­lmente nas planilhas oficiais. O professor Edmar Bacha já ensinou, em 1994, que o déficit público é ocultado quando há inflação alta e crescente. Não estamos, é verdade, num quadro de hiperinfla­ção, mas bastou os preços subirem de modo desordenad­o para o PIB e a arrecadaçã­o tributária aumentarem rapidament­e.

Nada a comemorar no front fiscal. Ato contínuo à queda da dívida-pib, em 2021, os juros aumentaram. Mais do que isso, não só a Instituiçã­o Fiscal Independen­te (IFI), mas economista­s do mercado e da academia projetam alta da dívida-pib em 2022. A IFI cumpriu o seu papel e alertou para os riscos do flerte com a inflação. Agora, é amargar um ano (mais um) de cresciment­o medíocre. Que 2023 chegue logo!l

A deterioraç­ão das expectativ­as de mercado resulta de uma política fiscal que implodiu o teto de gastos

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