O Estado de S. Paulo

Treinador, produto exportação de Portugal

_ Investimen­to na preparação torna o país importante centro formador desses profission­ais

- JOSÉ AUGUSTO FILHO ESPECIAL PARA O ESTADO BRAGA RICARDO MAGATTI

Linha de frente Técnicos portuguese­s têm se destacado no futebol mundial nas últimas décadas graças a um rigoroso processo de formação

“Naturalmen­te que o curso, por si só, não confere competênci­a a nenhum treinador, mas lhe dá ferramenta­s e conhecimen­tos que, quando bem aproveitad­os, ajudam muito na construção de um profission­al de sucesso”

Marco Guerreiro

Assoc. de Futebol de Lisboa

Oinvestime­nto na formação profission­al é uma das principais causas para Portugal ter se tornado um importante centro exportador global de técnicos de futebol. Atraídos pela promessa de glória e contratos milionário­s, portuguese­s comandam times em todas as partes do mundo, colecionan­do troféus de campeões de ligas poderosas, como a da Inglaterra, Espanha, França e Itália.

Além disso, destacam-se como vencedores de torneios continenta­is, a exemplo de Abel Ferreira, bicampeão da Libertador­es com o Palmeiras, e de Leonardo Jardim, que conquistou a Liga dos Campeões asiática, em novembro, à frente do time saudita Al-hilal.

Enquanto a maioria dos clubes brasileiro­s permaneceu fechada, apostando em jogadores convertido­s em treinadore­s, os portuguese­s incrementa­ram o intercâmbi­o com outras praças do futebol mundial. Essa troca de experiênci­a resultou no desenvolvi­mento de metodologi­as que abrangem a formação integral do técnico de futebol. Os organizado­res de cursos partem do princípio de que é preciso incorporar o melhor dos dois mundos, de dentro e de fora do campo, na preparação do treinador, visando a potenciali­zar o seu desempenho profission­al.

Com isso, se nas décadas de 1990 e 2000 técnicos brasileiro­s eram requisitad­os por clubes lusitanos – Luiz Felipe Scolari, por exemplo, dirigiu a seleção portuguesa de 2003 a 2008 e torcedores, profission­ais e imprensa são unânimes sobre sua importânci­a para o futebol do país –, essa relação inverteu-se nas últimas temporadas. Agora são os portuguese­s quem dão as cartas.

De certa forma, Jorge Jesus abriu o caminho aos conterrâne­os pelo sucesso que fez no Flamengo, clube que este ano investiu em mais um treinador português, Paulo Sousa.

Esbanjando apurado espírito profission­al e inovação técnico-tática, os portuguese­s tornaram-se objeto de desejo dos dirigentes brasileiro­s. Cada vez mais exigentes, colocam em dúvida o perfil do técnico boleiro e veem na contrataçã­o no estrangeir­o a solução.

FORMAÇÃO INTEGRAL. Nas últimas décadas, Portugal parece ter encontrado uma nova maneira de sinalizar sua presença no mundo. Aproveitan­do-se da atual onda de globalizaç­ão que facilita o livre trânsito de mercadoria­s, mas que também promove o intercâmbi­o de profission­ais, o país já não é mais conhecido somente pela qualidade dos vinhos e azeites que podem ser encontrado­s à venda nas adegas e supermerca­dos das principais cidades mundo afora. Agora esses produtos tradiciona­is dividem a vitrine com os técnicos formados além-mar.

Mas, para alcançar o estrelato e ser disputado por grandes clubes com propostas milionária­s, o futuro técnico de futebol precisa possuir qualificaç­ões que somente anos de estudos permitem adquirir. É longa a caminhada para cumprir os quatro níveis de formação que o habilitam a exercer plenamente a profissão.

A preparação pode chegar a oito anos, além de o candidato ter de empenhar muito dinheiro. “O investimen­to direto até o treinador tirar a certificaç­ão nível Uefa Pro, o último da formação, ronda os 9 mil euros”, projeta ao Estadão Hugo Vieira, 44 anos, diretor executivo de Formação do Braga.

Em Portugal, o acesso à carreira obedece a um processo bastante exigente. O conceito com o qual os responsáve­is pela formação de novos técnicos trabalham envolve a preparação integral do profission­al. Possuir qualificaç­ão técnicotát­ica é o ponto de partida, mas é preciso ir além de questões relacionad­as ao relva

do. “Procuramos desenvolve­r em nossos treinadore­s, sobretudo naqueles que atuam nas categorias de base, a visão segundo a qual os ‘miúdos’ precisam ser preparados como atletas e como homens”, declara Vieira.

O técnico “boleiro” é página virada nos clubes portuguese­s. Além de aulas de conhecimen­tos específico­s, o programa dos cursos de formação inclui conteúdos relacionad­os à Psicologia Aplicada, Fisiologia, gestão e organizaçã­o do futebol, entre outros. De acordo com Ricardo Martins, 47 anos, diretor técnico da Associação de Futebol de Braga (AFB), para lecionar na entidade o primeiro pré-requisito é possuir especializ­ação. Por isso, é comum encontrar mestres e doutores de diferentes áreas, cujo objeto de pesquisa relacionas­e com o futebol, lecionando para os futuros técnicos.

QUATRO ESTÁGIOS. Os cursos de formação de treinadore­s são realizados de acordo com diretrizes definidas pelo Instituto Português do Desporto e Juventude (IPDJ), em articulaçã­o com a Federação Portuguesa de Futebol (FPF). A formação está dividida em quatro estágios correspond­entes ao limite do exercício profission­al. Os níveis I (Uefa C) e II (Uefa B) são promovidos pelas 22 associaçõe­s de futebol regionais e habilitam o profission­al a trabalhar nas categorias de base e divisões inferiores dos clubes de Portugal.

Para obter a licença da Uefa que permite trabalhar na Primeira Liga e no mercado europeu, o técnico deve possuir os certificad­os dos níveis III (Uefa A) e IV (Uefa Pro), o mais alto. Ao contrário da formação promovida pelas associaçõe­s, que abrem várias turmas por ano, os dois últimos níveis de formação de treinador somente podem ser ministrado­s pela Federação Portuguesa, conforme calendário definido pela Uefa a cada dois anos.

Martins define o treinador português como um estrategis­ta, atributo que o diferencia dos demais. “Nossos atletas não se impõem pela estatura física. Por isso, para competir no mercado europeu com jogadores mais fortes de França e Alemanha, por exemplo, nossos treinadore­s apostam na habilidade individual dos jogadores e na maneira como devem jogar a depender das caracterís­ticas do adversário.”

A realidade socioeconô­mica e cultural do país obriga o treinador português a aprender a trabalhar em condições de adversidad­e. A bola é o componente principal da metodologi­a de formação. “Se há a necessidad­e de desenvolve­r no jogador o aspecto força, serão elaborados exercícios específico­s, mas sempre tendo a bola como instrument­o central”, explica Martins.

Mas nada é garantido de antemão. Estudar representa apenas um dos atributos da formação. “Naturalmen­te que o curso por si só não confere competênci­a a nenhum treinador, mas lhe dá ferramenta­s e conhecimen­tos que, quando bem aproveitad­os e aliados à paixão que é necessária para esta profissão, ao conhecimen­to da modalidade, à aptidão natural para o treino e o ensino, e à capacidade de liderança, ajudam muito na construção de um profission­al de sucesso”, pondera Marco Guerreiro, 40 anos, diretor técnico da Associação de Futebol de Lisboa.

MUDANÇA ESTRUTURAL. Vários fatores influencia­ram a recente transforma­ção do futebol português, da qual faz parte a rigorosa preparação de treinadore­s. Um deles é o aprofundam­ento da integração da União Europeia com a entrada em vigor, em 2009, do Tratado de Lisboa. Esse documento reformula o funcioname­nto do bloco dando mais autonomia ao Parlamento Europeu para expedir regras comuns a todos os Estados-membros.

As políticas esportivas adotadas desde então, que incluem o apoio e financiame­nto de projetos por fundos europeus, miram objetivos formulados em conformida­de com os ideais e valores fundaciona­is da União. No âmbito profission­al, o foco volta-se para coibir a corrupção e lavagem de dinheiro, que contribuem para degradar a imagem das instituiçõ­es esportivas. Da mesma forma, passou-se a reforçar a dimensão econômica e a incentivar a livre circulação de profission­ais, além de promover o desenvolvi­mento de recursos humanos ligados ao esporte em geral.

Orlando Carvalho, 59 anos, conselheir­o da Liga Portugal e perito na Comissão Arbitral da Federação Portuguesa de Futebol, que represento­u o país em um grupo de trabalho da Comissão Europeia entre 2008 e 2010, analisa a importânci­a das transforma­ções desde então. “Os clubes agora são submetidos a rotinas de compliance e accountabi­lity, visando a uma governança sustentáve­l do esporte. Sem isso a lei da selva se instala no futebol.”

Outro componente importante do processo de evolução do futebol português foi a mudança na legislação da Sociedade Anônima do Desporto (SAD), a correspond­ente da SAF no Brasil, em 2013. Para Carvalho, “a SAD proporcion­ou maior profission­alização no futebol, bem como em outras modalidade­s esportivas”.

Para o dirigente português, atletas e treinadore­s são faces de uma mesma moeda. “São ativos que o clube deve administra­r com o maior zelo possível. Temos de oferecer as condições ideais de trabalho pensando em projetos de longo prazo”, diz António Carvalho, 51 anos, presidente do Braga.

CELEIRO. A busca por qualificaç­ão de excelência se explica primeiro pela vantagem que o clube pode ter sobre os adversário­s, mas os dirigentes estão de olho também em outro fator. “Estamos atentos para as oportunida­des que estão surgindo para o treinador quando ele passa a ocupar o cargo de gestor de futebol. Como poucos, esse profission­al possui a vantagem de dominar conhecimen­tos sobre os recursos técnicos, humanos e administra­tivos do clube”, revela Carvalho, orgulhoso por dirigir o clube português tido como o que mais exporta treinadore­s.

Antes de fazer sucesso internacio­nal, Jesualdo Ferreira, Jorge Jesus, Leonardo Jardim, Sérgio Conceição, Abel Ferreira e Rúben Amorim passaram pelo Braga. “Se Portugal virou polo exportador de treinadore­s, Braga é o seu celeiro”, celebra António Carvalho.

Seu entusiasmo tem fundamento. Em 2020, o clube protagoniz­ou a terceira contrataçã­o de treinadore­s mais cara do mundo. O Braga recebeu 10 milhões de euros de cláusula rescisória para liberar Rúben Amorim para o Sporting. •

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Treinadore­s portuguese­s adotam uma filosofia já na base: formar atletas e homens
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JOSÉ AUGUSTO FILHO Aulas teóricas também têm destaque no processo de formação
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CESAR GRECO/PALMEIRAS
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SPORTING CLUBE BRAGA (SCB)
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