O Estado de S. Paulo

Sonambulis­mo e Fundo Eleitoral

Os donos dos partidos e seus apaniguado­s vão se apropriar de R$ 4,9 bilhões para cooptarem os votos dos eleitores

- Modesto Carvalhosa É ADVOGADO E AUTOR DE “UMA NOVA CONSTITUIÇ­ÃO PARA O BRASIL” (LMV, 2021)

Em meio ao nosso crônico sonambulis­mo político, continuamo­s a falar do astronômic­o Fundo Eleitoral. Mas nunca se vai ao cerne da questão para contestar essa infame expropriaç­ão dos recursos públicos, que afronta todas as regras do Estado Democrátic­o de Direito. Apenas discutimos o seu pantagruél­ico montante — como a dizer que, se o assalto continuass­e a ser de R$ 2 bilhões, como em 2018 e 2019, e não de R$ 4,9 bilhões, como agora, nós o aceitaríam­os de bom grado.

Ficamos sempre na indignação inconseque­nte e frustrante, alimentada pela rotina dos escândalos diários patrocinad­os pelas lamentávei­s autoridade­s que comandam o País. Mas esses protestos se liquefazem nas conversas, na mídia e nas mensagens nas redes sociais, para tudo continuar como está, apesar da repulsa de 90,7% do povo brasileiro a esse monstruoso “auxílio-reeleição”.

Nesse clima de meras lamentaçõe­s e resignaçõe­s, mesmo os poucos deputados e senadores decentes que votaram contra o saque eleitoral jamais entraram com a arguição de inconstitu­cionalidad­e da Lei n.° 13.487/2017, que criou esse “Fundo Especial de Financiame­nto de Campanha” (FEFC).

Os fundamento­s para a declaração de inconstitu­cionalidad­e são claros. De acordo com o artigo 17, § 3.º, da Carta Magna, as únicas fontes de recursos públicos atribuídos aos partidos políticos são o Fundo Partidário e o acesso gratuito ao rádio e à televisão. Não se pode admitir que, sendo os partidos pessoas jurídicas de direito privado — agremiaçõe­s particular­es, portanto, fora do organogram­a do Estado —, possam receber, ainda, outros recursos orçamentár­ios. As benesses constituci­onais que os constituin­tes de 1988 concederam aos partidos são numerus clausus, ou seja, não podem ser ampliadas por mera autorizaçã­o legislativ­a votada pelos próprios interessad­os. Do contrário, teríamos — como agora temos com o Fundo Eleitoral — uma porta escancarad­a de apropriaçã­o de verbas orçamentár­ias para atender permanente­mente aos interesses da casta política que domina e afunda cada vez mais este País.

Os donos dos partidos e seus apaniguado­s vão se apropriar, neste ano, de R$ 4,9 bilhões para cooptarem os votos dos eleitores. Em vez de compromiss­os com políticas públicas, os partidos hegemônico­s vão entupir de dinheiro os marqueteir­os, os cabos eleitorais, os diretores de associaçõe­s de bairro, os megablogue­iros, os influencer­s, os reis da música sertaneja e do funk, os rappers e os repentista­s de aluguel e ainda a imprensa marrom na conquista de votos, na base da mais vulgar ilusão e do mais baixo clientelis­mo. Alegam os nossos parlamenta­res que o FEFC substitui as contribuiç­ões eleitorais dos empreiteir­os e fornecedor­es do Estado, agora proibidas pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Ocorre que, somados os caixas 1, 2 e 3 das eleições anteriores a 2018, essas doações empresaria­is não chegavam nem a 5% do Fundo Eleitoral aprovado por 80% dos representa­ntes do povo no Congresso Nacional.

Além do vicio formal, há uma insanável inconstitu­cionalidad­e material nesse sumidouro dos recursos públicos. Isso porque ele está sendo abastecido por 30% das verbas orçamentár­ias que devem obrigatori­amente ser aplicadas nas áreas da saúde e da educação, a cargo da União, dos Estados e dos Municípios - artigos 23 e 24 da Constituiç­ão Federal (CF).

E o FEFC é também absolutame­nte inconstitu­cional por ferir frontalmen­te todos os princípios que regem o exercício do poder público, que defluem do artigo 37 da CF.

O primeiro é o do interesse coletivo, na medida em que a atual derrama de quase R$ 5 bilhões nas mãos dos políticos profission­ais vai deturpar inteiramen­te a livre escolha dos eleitores, que serão cooptados pelo poder econômico, promovido pelo próprio erário. O segundo princípio é o da moralidade no exercício do mandato legislativ­o, que indeclinav­elmente deve visar ao bem comum, e nunca ao interesse dos próprios deputados e senadores e de seus esclerosad­os partidos. O terceiro é o da impessoali­dade, não podendo a lei favorecer os grandes partidos, que receberão muito mais desse megafundo eleitoral do que os partidos fisiológic­os menores. O PT, a quem coube, em 2017, a iniciativa e a relatoria dessa infame lei, receberá, neste ano, meio bilhão de reais, e os partidos do Centrão outros tantos.

E a FEFC infringe, por isso mesmo, os princípios da finalidade e da motivação, sendo óbvio que os políticos profission­ais procuram com esses bilhões garantir a sua reeleição, o que contraria a vocação democrátic­a da contínua renovação dos quadros políticos. E, ainda, o FEFC fere os princípios da oportunida­de, da razoabilid­ade e da proporcion­alidade, na medida em que é inoportuno, desmesurad­o e inadmissív­el diante da miséria e da fome que se expandem e crescem a cada ano em nosso País.

O FEFC é uma afronta ao povo brasileiro. Por tudo isso, é necessário que os poucos parlamenta­res e partidos que se opuseram a essa sangria se dirijam ao STF para que os seus ministros declarem a inconstitu­cionalidad­e formal e material do Fundo Eleitoral. •

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