O Estado de S. Paulo

Notas de um janeiro chuvoso

- É ANTROPÓLOG­O SOCIAL E ESCRITOR, AUTOR DE ‘FILA E DEMOCRACIA’ Roberto Damatta

Achuva é o imprevisto mais banal de nossas vidas. Maviosa como um adorável chuvisco, ela pode virar tempestade insolente e, diferente da TV ou da luz, não é controlada por nossa vontade. Quando a vemos, teimosa e inesperada, medimos as perdas que nos obrigam a repetir o mantra da necessidad­e das “políticas públicas”.

O “tempo” previsto tem seu lado imprevisto.

*

A operação Lava Jato foi morta, mas a corrupção continua viva. Seria ela um mecanismo ligado ao que chamamos de “político”? Ou é simplesmen­te um hábito, costume ou direito de certas grupos e classes sociais?

* Roubar do que é de todos (a verba, o erário, o dinheiro impessoal) não é roubo. É uma oportunida­de ou talvez um direito. Seria uma cota-parte. Os fiscais têm direito a uma parcela do imposto pago pela população. É uma questão de controle de um velho hábito legalizado?

*

Ficar velho é redescobri­r que certos órgãos tinham múltiplas funções... *

Num filme antigo, um ditador latino-americano ensina para o mocinho (naturalmen­te americano e democrata cuja ética médica obriga a operá-lo) a razão do autoritari­smo: no seu país, explica, quando uma pessoa vê uma placa ordenando “não cuspa na calçada”, não há problema; aqui, porém, eles cospem na placa!

*

Como explicar que desobedece­mos a lei sem compreende­r que, no Brasil, a lei não é feita para todos, mas para alguns grupos, categorias ou pessoa. Os negros, índios, mestiços com “jeito” de bandidos, por exemplo... Quantos “jeitos” indicativo­s de inferiorid­ade e malignidad­e temos no Brasil?

*

Quantas vezes você ouviu que a regra não era para você? E quantas vezes você verificou que a posição social (dada pelo dinheiro, cargo político, relação familiar, aparência e cor da pele – o tal “jeito”) não era coerente com a lei porque era incoerente com essa posição?

*

A lei, do mesmo modo que o trabalho lido como castigo e pouco como vocação, foi feita pra “negros” como uma categoria geral que podia abrigar quem duvidasse de certos padrões e expectativ­as.

*

Você se lembra do samba carnavales­co de 1946, Trabalhar, Eu Não, cuja letra explica a aversão: “Eu trabalhei como um louco / Até fiz calo na mão / O meu patrão ficou rico / E eu, pobre sem tostão / Foi por isso que agora / Eu mudei de opinião”. Foi composto por Aníbal Alves de Almeida. Sem querer – quem sabe? –, o Almeidinha carnavaliz­ou Marx e Engels no Brasil. •

Ficar velho é redescobri­r que certos órgãos tinham múltiplas funções...

 ?? ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil