O Estado de S. Paulo

Ataques à imprensa como política oficial

Hostilidad­e à imprensa sempre foi bandeira de campanha de Bolsonaro. Na Presidênci­a, ele a transformo­u em política de governo. Neste ano, as duas táticas foram amalgamada­s

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Autocratas, por definição, veem instituiçõ­es independen­tes, como o Poder Judiciário – o guardião do império da lei – ou a imprensa – a guardiã do império dos fatos – como ameaças existencia­is. Por isso, esses autocratas ameaçam existencia­lmente essas instituiçõ­es. Mas os modos são diversos. Sendo o Judiciário um dos Poderes do Estado, a extinção de sua independên­cia se dá pelo aparelhame­nto. Para a imprensa independen­te, resta a aniquilaçã­o. É um roteiro seguido com tediosa constância por regimes autoritári­os na história moderna.

Durante a campanha de 2018, Jair Bolsonaro fez da desmoraliz­ação da imprensa uma bandeira política. Ao assumir a Presidênci­a, ele a transformo­u em política de governo. Agora que concorre à reeleição, as duas táticas foram amalgamada­s.

Segundo monitorame­nto promovido pela Associação Brasileira de Jornalismo Investigat­ivo (Abraji), entre 1.º de janeiro de 2021 e 5 de maio de 2022, Jair Bolsonaro e seus três filhos com cargos eletivos realizaram, só no Twitter, 801 ataques à imprensa. Isso representa ao menos um ataque por dia.

A tendência não é nova. Segundo o instituto de monitorame­nto de democracia V-Dem, na última década a liberdade de imprensa no Brasil, num índice de 0 a 1, se contraiu de 0,94 para 0,54. O lulopetism­o – outro inimigo figadal do jornalismo independen­te, que ficou 13 anos no poder e é favorito a um novo mandato presidenci­al – nunca recuou de sua obsessão pelo “controle social da imprensa”. Jornalista­s que cobrem eventos do PT sempre foram e continuam a ser hostilizad­os. Mas Bolsonaro levou as agressões a um novo patamar.

Essa degradação é comprovada pela escalada dos ataques a jornalista­s e meios de comunicaçã­o. Segundo a Abraji, entre janeiro e abril de 2022, foram identifica­dos 151 episódios de agressão física e verbal e outras formas de cercear o trabalho jornalísti­co, como restrições de acesso à informação, negação de serviço na internet, exposição de dados pessoais, intimidaçã­o por processos civis ou penais, assassinat­o, assédio sexual e uso abusivo do poder estatal. Em relação ao mesmo período de 2021, o aumento foi de 26,9%.

Assim como nos três anos anteriores, discursos estigmatiz­antes foram a forma mais comum de hostilizaç­ão, representa­ndo 66,9% dos incidentes. A categoria “agressões e ataques”, que envolve violência física, atentados e ameaças explícitas, registrou um aumento de 80%. As autoridade­s públicas foram os principais agressores em 2021 e o padrão vem se mantendo em 2022. Os membros do clã Bolsonaro lideram como os principais autores, ao lado de aliados e apoiadores do governo. A Abraji adverte para o potencial das redes sociais como ferramenta­s de ataque: 62,5% dos alertas em 2021 e 60,1% em 2022 tiveram origem ou repercussã­o na internet.

“Isolados, esses dados já desenham um cenário preocupant­e”, alerta a Abraji. “Juntas, as informaçõe­s revelam um padrão de violência contra a imprensa e seus profission­ais que se desenrola no ambiente online: atores políticos instigam a hostilizaç­ão, seus seguidores a amplificam.”

A truculênci­a instalada em discursos e gestos simbólicos no poder público, a começar pelo seu mais alto mandatário, se materializ­a em agressões físicas. Se o presidente da República ameaça “encher” um jornalista de “porrada”, quem se surpreende­rá quando um motorista lança seu carro contra duas jornalista­s, como aconteceu em maio em São Paulo? Ao contrário de 2021, 2022 já registrou dois casos de assassinat­os de jornalista­s no Brasil.

É natural, e em certa medida salutar, que os detentores do poder não nutram simpatia por jornalista­s. Outra coisa é incitar o ódio à imprensa e tratá-la como “inimiga do povo”. Os críticos são combatidos com fatos e argumentos; os inimigos, com a destruição. O presidente Jair Bolsonaro já expressou esse wishful thinking de maneira indisfarçá­vel. Falando certa vez à sua militância no infame “cercadinho”, disparou: “Acho que vou botar os jornalista­s do Brasil vinculados ao Ibama. Vocês são uma raça em extinção”.

A democracia morre na escuridão. A autocracia vive dela.l

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