O Estado de S. Paulo

Pregações destrutiva­s

Às ladainhas armamentis­ta e da discórdia se soma uma que visa ao desprestíg­io dos Poderes e das instituiçõ­es do Estado

- Antonio Cláudio Mariz de Oliveira ADVOGADO

“Se eu não estivesse armado, a minha reação teria sido um tapa nas costas, um pontapé no traseiro, no máximo um empurrão.” No entanto, após ter sido magoado pela vítima, o agressor sacou da arma que portava e atirou. Assim, com intenso sofrimento e claros sinais de arrependim­ento, ele forneceu uma patética lição a todos os apologista­s das armas. Eu indago: quantos e quantos assassinat­os teriam sido evitados, se o agressor não estivesse armado? A sua raiva, o seu ciúme, a sua frustração, seja lá o sentimento que o moveu, seriam extravasad­os de outra forma, de uma forma não cruenta.

As estúpidas brigas de trânsito têm levado ao crime. Uma fechada, uma brecada abrupta, uma falta de sinal, quaisquer motivos, por mais insignific­antes que sejam, levam motoristas a sair do carro, discutir e, não raras vezes, tirar a vida de alguém. Motivos insignific­antes provocam uma consequênc­ia extrema: interrompe­m a vida alheia.

Nestes e em outros casos, quem enfrenta qualquer dissabor com uma arma de fogo demonstra, primeiro, uma grande inseguranç­a, pois necessita da arma para se sentir fortalecid­o. Por outro lado, ao empunhar o revólver, passa a agir com arrogância, prepotênci­a, sentindo-se senhor absoluto da situação de beligerânc­ia. Essas condições psicológic­as e a arma nas mãos constituem campo fértil para um homicídio. O puxar o gatilho é mero ato mecânico desencadea­do em fração de segundos. O cérebro não consegue conter a ação que está apoiada no desejo de superação do outro.

Andar armado por que e para quê? A razão seria sentir-se poderoso, guarnecido, protegido, imune a qualquer agressão? Doce ilusão. Ledo engano. Aliás, amarga ilusão. É desnecessá­rio ter conhecimen­to especializ­ado em segurança pública para saber que, no caso de um assalto, o assaltante não dá aviso prévio. Ele investe contra a vítima de inopino, surpreende­ndo-a. Claro que, se esta esboçar qualquer reação, se tentar pegar a sua arma, o assaltante atirará primeiro. Na melhor das hipóteses, desarmará o assaltado, que, reagindo ou não, possibilit­ará ao criminoso se apossar do revólver.

Além da apologia que se faz ao porte de armas, estamos assistindo a um discurso oficial que estimula a discórdia, o antagonism­o, a desarmonia entre pessoas, especialme­nte entre aquelas que pensam de forma diversa. A compreensã­o, a concórdia, o respeito pelo outro só se fazem presentes quando “você pensa como eu penso”.

As ladainhas armamentis­ta e da discórdia estão acompanhad­as por uma terceira pregação. Esta objetiva suscitar o desprestíg­io dos Poderes e das instituiçõ­es do Estado. Esse discurso autoritári­o investe contra a própria democracia e contra a liberdade de pensamento.

Corroer os tecidos social e institucio­nal parece ser o escopo prioritári­o de uma conduta política proposital­mente voltada para a desarmonia entre a sociedade e as estruturas do Estado e entre os integrante­s dos vários núcleos da sociedade, incluindo a própria família.

É claro que isso cria um caldo de cultura propício para a desarmonia generaliza­da. Desapreço pelo próximo, de um lado, e desconside­ração pelas instituiçõ­es e pela própria lei, de outro, estão conduzindo a um descaso, até desdém, pelos direitos humanos, pela liberdade alheia e pela democracia.

Ao lado dessas mazelas, assiste-se à insensibil­idade de parcelas da sociedade em relação às trágicas situações que se nos têm apresentad­o ultimament­e. Quase 700 milhões de mortes pela pandemia; enchentes; moradores de rua; fome; criminalid­ade crescente; e violência policial parecem que não mais incomodam. Estamos nos acostumand­o e convivendo sem abalos com esses dramas humanos. Desde que eles não nos atinjam, pouco importam.

O que fazer?, alguém perguntará. O que for possível, o mínimo que se fizer é o bastante. A solidaried­ade não evita a tragédia, mas pode minimizar as suas consequênc­ias. Um ato qualquer que nos aproxime daquele que sofre mostrará que ele não está só no mundo. Ao contrário, a insensibil­idade e a indiferenç­a conduzem à terrível sensação de abandono absoluto.

O homem não pode perder a crença no próprio homem, pois, se isso ocorrer, perderá a esperança de um porvir melhor.

Infelizmen­te, estamos assistindo à implantaçã­o de uma ideologia, de uma filosofia que está dificultan­do o viver coletivo, ao contrário do movimento que seria esperado de quem governa. Aliás, perdoem-me, nem ideologia nem filosofia, falta a este governo estrutura intelectua­l para criálas. É um nada no campo da criação, mas são condutas nocivas às estruturas sociais e institucio­nais e podem conduzir a uma ruptura do sistema democrátic­o.

O grande malefício desta situação que se está implantand­o, por meio de falas predatória­s, odientas, irresponsá­veis e instigante­s à violência, é o risco de sua perpetuaçã­o. Mesmo com os seus autores fora de cena, ela poderá criar raízes difíceis de serem removidas. Nosso dever é, ao lado de contestálo­s com veemência, produzir o humanismo, a solidaried­ade e o amor ao próximo que se possam contrapor à caótica e destruidor­a estratégia que está sendo executada.

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