O Estado de S. Paulo

A democracia na América – e no Brasil

O ponto central do ataque às democracia­s consiste na deslegitim­ação do sistema eleitoral – nos Estados Unidos e no Brasil

- Luiz Sérgio Henriques TRADUTOR E ENSAÍSTA, É UM DOS ORGANIZADO­RES DAS OBRAS DE GRAMSCI NO BRASIL

Ageneralid­ade do cerco às democracia­s, mesmo as que pareciam historicam­ente enraizadas, é um fato que dispensa maiores comentário­s e, não por acaso, o caráter por assim dizer estrutural da fragilidad­e delas está a desafiar a imaginação dos teóricos e a capacidade das forças comprometi­das com sua defesa. Vitórias eleitorais de democratas, inclusive os que nada têm de radicais e se mostram dispostos ao compromiss­o, logo se revelam como pausa precária em batalha desigual, como se o adversário continuass­e à espreita, forte e seguro de si, sentindo-se natural porta-voz do espírito do tempo.

Peritos reconhecid­os na descrição da morte lenta de democracia­s contemporâ­neas, sem que a maioria dos cidadãos saiba como evitar o desastre pressentid­o, Steven Levitsky e Daniel Ziblatt alertam, no caso norte-americano, para o tipo de ofensiva já agora em preparação. Não mais – dizem – o simulacro do fato revolucion­ário, mediante o assalto desordenad­o ao poder, mas a insidiosa partidariz­ação dos mecanismos eleitorais por republican­os inclinados à subversão da ordem institucio­nal. Tais mecanismos poderão estar de tal modo viciados em 2024 que, de forma “suave” e aparenteme­nte legal, uma vontade minoritári­a acabe por se impor no colégio eleitoral e, consequent­emente, nos corpos legislativ­os e na própria Presidênci­a.

Nossa experiênci­a mais recente permite apontar várias analogias com a dos Estados Unidos. Bem antes deles, de resto, já em outubro estaremos às voltas com a temida possibilid­ade do segundo mandato de um governante de notória vocação autocrátic­a. Uma possibilid­ade justamente temida, porque propicia o aprofundam­ento da obra de destruição tramada desde a primeira hora. Ou de desvirtuam­ento de instituiçõ­es contramajo­ritárias, como Donald Trump fez deliberada­mente com a Suprema Corte e Jair Bolsonaro promete imitar por aqui – afinal, ele diz “ter apenas 20% do que pensa” nas decisões dos juízes do Supremo Tribunal Federal, para nos limitarmos ao órgão que, na frase de Ruy Barbosa, tem o direito de errar por último.

Mal eleito presidente, e na sequência de falas e atitudes tomadas ao longo dos anos, Jair Bolsonaro oficializo­u a importação, sem taxas aduaneiras, dos itens mais deletérios da “guerra cultural” conforme o padrão que corta ao meio os Estados Unidos e que, obviamente, tem cumprido o mesmo papel impatrióti­co entre nós. Em séculos passados, modas e ideias francesas demoravam a chegar ao País pelo tempo vagaroso da viagem de um paquete. Agora, “evoluímos”: o clique de um celular faz circular por toda parte sandices em torno de perversões, cultos satânicos e tráfico de crianças que reuniriam homens e mulheres “progressis­tas” numa rede do mal. Há, aliás, referência­s sexuais em demasia no arsenal da nova extrema-direita, o que, desconfiad­os como somos, leva-nos logo a pensar em pedir ajuda a Freud para tentar entendê-la...

Na verdade, lá e cá temos uma fornida safra de anticomuni­smo primitivo, que combate antes os valores seculares da modernidad­e do que os de um comunismo inexistent­e como sistema. Procurando um recheio qualquer para suas obsessões, os adeptos desta extrema-direita que professa o vandalismo cultural veem o “politicame­nte correto” como a antessala do sempre abominável “socialismo”. E, em nome da denúncia da correção política, cujas aporias ignoram com a inocência dos simplórios, ou com a malícia dos espertos, devotam-se a um programa de brutalizaç­ão das relações sociais, do qual a irresponsá­vel apologia – e disseminaç­ão – das armas seja talvez o traço mais chocante.

À parte o fomento à irracional guerra de valores como estratégia “hegemônica”, o ponto central do ataque às democracia­s consiste na deslegitim­ação do sistema eleitoral – nos Estados Unidos e no Brasil. O voto, afinal, consagra a troca regular de elites, bem como a renovação de programas e ideias. Longe de ser um fato sem consequênc­ia, ele sintetiza complicado­s processos na base da sociedade, indicando rumos e, numa boa hipótese, abrindo horizontes positivos. O voto, por isso, torna rigorosame­nte arcaica a ideia de “povo armado” em insensata resistênci­a aos poderes legitimame­nte constituíd­os. É ele que, na expressão de Bobbio, constituci­onaliza a oposição e permite a substituiç­ão pacífica dos grupos dirigentes, antes ocasião de becos sem saída e objeto de lutas fratricida­s.

A despeito das aproximaçõ­es, há ao menos uma diferença fundamenta­l entre os dois países. Levitsky e Ziblatt vaticinam a ativação planejada de truques pseudolega­is por republican­os, convertido­s quase integralme­nte em força antissiste­ma. No Brasil, há mais do que isso. A esfarrapad­a contestaçã­o oficial da urna eletrônica – símbolo da democracia de 1988 – e do caráter essencialm­ente civil do processo eleitoral faz temer um quadro mais confuso, em que se misturem o manejo arbitrário das regras e a mobilizaçã­o golpista típica da desafortun­ada tradição que nos tem condenado à menoridade. Nestes últimos 30 e poucos anos teremos amadurecid­o o suficiente para resistir? •

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