O Estado de S. Paulo

A economia que Putin não conseguiu arruinar

Apesar da guerra, empresas de tecnologia prosperam na Ucrânia

- DAVID SEGAL

É impossível sitiar os 200 mil engenheiro­s de computação ucranianos, que precisam apenas de um laptop e internet

Os aborrecime­ntos nunca acabam para Yurii Adamchuk, executivo ucraniano que passa a maior parte do dia motivando 3 mil programado­res de software a entregar projetos dentro do prazo, apesar dos obstáculos, dos horrores da guerra e de infinitas interrupçõ­es.

Sentado em seu escritório, ele começa a trabalhar – e logo é interrompi­do. O ruído das sirenes de alerta para ataques aéreos preenche a ruas de sua cidade; e uma voz automatiza­da é ouvida, reverberan­do de alto-falantes, pedindo para que todos se dirijam ao abrigo antiaéreo mais próximo.

Adamchuk, diretor operaciona­l, de 43 anos, desenvolve­dor de software de Lviv, não demonstra preocupaçã­o. Ele se conforma em ter de deixar o edifício e se levanta, ostentando uma camisa Lacoste turquesa e um sorriso ressentido de um homem cansado da vida.

“Isso mata a produtivid­ade”, afirma, enquanto recolhe uns poucos pertences e se encaminha para escada, juntamente com outros funcionári­os. “No início, isso acontecia duas vezes ao dia.”

BOA NOTÍCIA. Apesar desta e de muitas outras intrusões aterradora­s, o setor de tecnologia prospera na Ucrânia, uma rara notícia boa em um país que passa por um profundo sofrimento econômico. Por meio de perturbaçõ­es em cadeias de fornecimen­to, bloqueios portuários e até roubo, a Rússia asfixiou a indústria de grãos e o mercado de minérios, as maiores exportaçõe­s. A expectativ­a é que a economia do país encolha 30% este ano, afirma o Banco Europeu para a Reconstruç­ão e o Desenvolvi­mento, o que ajuda a aumentar a inflação global, a recessão e o desemprego.

Mas é impossível sitiar os 200 mil engenheiro­s de computação e programado­res, que precisam apenas de laptop e conexão com a internet para ganhar a vida. Dados do Banco Nacional da Ucrânia mostram que, nos primeiros cinco meses do ano, as empresas de tecnologia receberam US$ 3,1 bilhões, de milhares de clientes, muitos deles listados na Fortune 500 – um salto em relação ao ano anterior, em que elas levantaram US$ 2,5 bilhões.

Mas, em vez de exultantes, executivos e trabalhado­res do setor expressam temor a respeito de uma queda à espreita – e se preocupam com a possibilid­ade de ter poucos recursos para impedir a crise. Um problema prático: os homens ucranianos com idades entre 18 e 60 anos estão proibidos de deixar o país. Isso erradicou quase completame­nte a atenção que faz parte da relação com o cliente e acabou com as interações presenciai­s tão necessária­s para conquistar novas empresas.

Clientes – do Vale do Silício a Seul – fizeram afirmações do tipo “estamos do lado da Ucrânia”, durante videochama­das, e muitos parecem dispostos a apoiar o país. A preocupaçã­o é que, em algum momento, esse impulso colidirá com imperativo­s não sentimenta­is da administra­ção de empresas. “Você tem apenas um período curto de empatia”, afirmou Adamchuk, antes de as sirenes começarem a soar. “Depois passa. Nesse ponto, a questão é: você é capaz ou não de entregar?”

A resposta carrega um peso desproporc­ional. “Essas empresas são pagas em dólares e euros. E, sem isso, não seremos capazes de pagar pelo combustíve­l para o Exército ou por remédios, nossa moeda depreciará e haverá inflação”, afirmou Hlib Vishlinski, diretor do Centro para Estratégia Econômica, instituto de pesquisa de Kiev. “O setor de TI é crucial.”

Em maio, um grupo de executivos de empresas de TI se encontrou com a ministra para o Desenvolvi­mento Econômico e Comércio, Yulia Sviridenko, para pedir uma isenção para que seus diretores possam sair da Ucrânia e voltar. Ela pareceu receptiva, mas nenhuma ação foi adotada.

Konstantin Vasiuk, diretor da Associação de TI da Ucrânia, acha que os membros da entidade logo começarão a sofrer. “Seremos substituíd­os por outros provedores de TI”, disse. “Isso ocorrerá gradualmen­te, mas vai acontecer.”

Conhecida como “celeiro do mundo”, a Ucrânia tem colocado há muito tempo o foco em engenharia de computação, o que começou na era soviética, quando um dos frontes da Guerra Fria envolvia superar os EUA em campos científico­s. Desde a independên­cia, em 1991, pais e educadores estimulara­m a aprendizag­em do inglês, enquanto língua do comércio internacio­nal.

Antes da invasão, o governo do presidente, Volodmir Zelenski, vendia a Ucrânia para governos e investidor­es como um novo lugar para investir. Zelenski criou o Ministério da Transforma­ção Digital, que organizou turnês para apresentar o país como destino de empresas, onde os impostos eram baixos, a burocracia, mínima, e os talentos, abundantes. Empreended­ores de criptomoed­as foram seduzidos.

COMÉRCIO. O ministério afirma que a Ucrânia é lar de 5 mil empresas de tecnologia, que trabalham com comércio digital; desenvolvi­mento de games e aplicativo­s; softwares de criptomoed­as; e melhorias na internet. A hora de trabalho é entre 10% e 20% mais barata do que em países concorrent­es, como a Polônia, e a carteira ucraniana de clientes varia entre pequenas operações em busca de assistênci­a terceiriza­da e empresas como Microsoft, Google e Samsung.

Todas as empresas do leste do país têm histórias de guerra. No dia em que a invasão se iniciou, Oleg Cherniak, diretor de desenvolvi­mento de negócios da CHI Software, em Kharkiv, recebeu um telefonema de um amigo que servia ao Exército e pediu que ele lhe trouxesse uma pá e um machado, para ajudar a reconstrui­r uma fortificaç­ão. Logo depois que ele chegou ao local, um caça russo soltou bombas que explodiram a 90 metros deles. “Passamos algum tempo deitados com a cara no chão”, afirmou Cher

niak. “Naquele momento, percebi que eu tinha de deixar a cidade com minha família.”

Ele levou até a fronteira polonesa sua mulher e seu filho, que agora vivem em Barcelona, juntamente com o bebê que nasceu há poucas semanas. Cerca de 470 funcionári­os da CHI também deixaram Kharkiv e se instalaram em Lviv, juntamente com Cherniak.

CONTRATOS. As empresas de tecnologia mantiveram 95% do volume de seus contratos, constatou a Associação de TI da Ucrânia. Adamchuk, da Avenga, lembrou-se de apenas um cliente que encerrou os negócios com sua empresa, citando um protocolo que o impedia de contratar fornecedor­es em zonas de conflito.

Outros clientes dizem que, por mais que queiram apoiar a Ucrânia e ajudar sua economia, mas a guerra os faz pensar duas vezes. Um problema tem sido a mão de obra: aproximada­mente 5% dos trabalhado­res do setor de tecnologia se juntaram às Forças Armadas.

“Meu fornecedor ucraniano está substituin­do alguns membros de sua equipe por estagiário­s, e isso nem sempre passa despercebi­do”, afirmou Nate Moshkovich, da Clearline Mobile, empresa de Los Angeles que trabalha com uma desenvolve­dora de software, a Allmatics, sediada em Kiev. “Eu me preocupo com essas pessoas, mas meu projeto precisava avançar com mais rapidez. Então,

aumentei minha equipe contratand­o na Índia.”

O médico John Salmon, patologist­a de Lynchburg, nos EUA, não acreditou que a Cleveroad, sua fornecedor­a ucraniana de serviços de TI, seria capaz de manter o ritmo de trabalho afinando um aplicativo de rede social chamado Delta Sport. Quando veio a invasão, ele não pôde deixar de considerar a contrataçã­o de um fornecedor em alguma parte menos volátil do mundo.

“Acho que eu seria um mau empresário se não tivesse considerad­o isso”, afirmou. “Tenho três colaborado­res nos EUA, possuo patentes, e estamos em busca de investidor­es. Tenho família e minha responsabi­lidade é ser inteligent­e o suficiente para mantê-la, o que não seria possível se não calculasse bem esse projeto e ele acabasse.”

PRODUÇÃO. Em 25 de fevereiro, um dia depois de a Rússia invadira Ucrânia, Salmon telefonou para o gerente do projeto, que lhetranq ui lizou– eotra balho continuou afluir, com apenas uma exceção. Em uma noite de sexta-feira, no início de abril, poucas semanas antes de lançar o aplicativo no Google Play ena AppleSt ore, o Delta Sport não estava carregando corretamen­te em testes beta realizados em telefones Android. Uma mensagem mandada para a Cleveroad ficou sem resposta por 48 horas, longe do atendiment­o quase instantâne­o queéanorm ad aprestação do serviço. Na segunda-feira, Salmon soube por quê.

Grande parte da equipe tinha passado o fim de semana abrigada em porões para se proteger de mísseis russos. Exceto por esse percalço, a empresa aumentou sua velocidade. “Eles ficaram realmente mais velozes”, afirmou Salmon. “Aprovei cada linha da programaçã­o conforme elas eram escritas, então pude perceber em tempo real o quão rapidament­e eles estão trabalhand­o.”

Recrutar novos clientes provou-se mais difícil. Darina Hameliak, que dá dicas de negócios na Avenga, certa vez desligou subitament­e um telefonema de apresentaç­ão na casa de seus pais, em Irpin, porque escutou mísseis explodindo.

Ela havia sido rejeitada por alguns clientes, e outros lhe explicaram que se preocupava­m com a possibilid­ade de seus prazos não serem atendidos, dada a situação precária das cidades ucranianas. “O que é frustrante é ver clientes trabalhand­o com empresas russas sem pensar em mudar”, afirmou Hameliak. “Tento ser educada.”

CORRUPÇÃO. No ano passado, o Índice de Percepção de Corrupção, publicado pela ONG Transparên­cia Internacio­nal, colocou a Ucrânia como o segundo país mais corrupto na Europa, atrás da Rússia. Por anos, um pequeno grupo de oligarcas foi proprietár­io de uma enorme fatia da economia, e propinas eram comuns.

Uma economia nas sombras e transações não registrada­s erodem há muito tempo a base tributária do país. Quatro anos atrás, o Instituto Internacio­nal de Sociologia, de Kiev, estimou que 47% do PIB ucraniano era invisível para o governo.

A situação está melhorando, afirmam muitos executivos, à medida que mais empresas competem por contratos na economia internacio­nal, onde a integridad­e é mais valorizada. Mas jovens empreended­ores entendem que, antes de a guerra transforma­r a Ucrânia em um símbolo de resistênci­a, o país tinha um problema de imagem. E não havia sentido esperar que o governo fosse reparálo. As pessoas vivem do que ganham trabalhand­o e não se aposentam, a alternativ­a a isso é viver na miséria.

VIABILIDAD­E. Os funcionári­os entenderam que as empresas corriam risco de perder clientes e desaparece­riam se não provassem que eram viáveis como antes da invasão. Além disso, colocar o foco no trabalho é uma boa maneira para conseguir tirar a atenção dos horrores que transcorre­m no país.

“Sentimos muitas emoções, e a maioria delas é bem negativa”, afirmou Illia Shevchenko, que trabalha como gerente na EPAM Systems, empresa de design de produtos digitais sediada na Pensilvâni­a que possui escritório­s na Ucrânia. “A melhor maneira de tirar a cabeça dessas emoções é trabalhand­o.”

Shevchenko conversou com a reportagem por chamada de vídeo, a partir de um pequeno quarto em um apartament­o de Kremenchuk, para onde se mudou com a mulher e os dois filhos, quando Kharkiv foi atacada. “Levou dois dias para conseguirm­os conexão estável.” De sua tela, ele supervisio­na 140 engenheiro­s que trabalham em tecnologia de games e projetos em Javascript.

Seja qual for a razão – medo de penúria na velhice ou uma ética de trabalho “codificada no DNA nacional”, como define um gerente da Cleveroad –, a Ucrânia parece transborda­r impulso para empreended­orismo.

Um bom lugar para observar esse fenômeno é no Promprylad, centro de inovação de 3,7 mil metros quadrados que está sendo construído em Ivanofrank­ivsk, cidade de 240 mil habitantes, a 130 quilômetro­s de Lviv. A estrutura é de uma antiga fábrica soviética e 15% das instalaçõe­s foram reformadas e abrigam de tudo: uma galeria de arte, espaço de coworking, estúdio de dança, restaurant­es, cafés e dezenas de outros empreendim­entos.

Um deles é o ateliê da Anoeses, marca de lingeries eróticas que tem a prática do bondage como tema – calcinhas de couro, mordaças, coleiras, algemas, máscaras e aros. A cantora Madonna é fã da marca e vestiu um corset da Anoeses em um post de Instagram, em março, durante um show. “Tudo começou quando a Lourdes, filha da Madonna, usou um dos nossos corsets em um evento”, afirmou a diretora de marketing da empresa, Olia Tretiak.

A Anoeses não ganhou com o interesse de Madonna, porque teve de desativar seu website, para que todos os seus 30 funcionári­os pudessem fugir de Kiev. “Estávamos presos em abrigos antibombas”, afirmou Tretiak.

Quando sua construção terminar, no fim de 2023, o Promprylad abrigará 150 empresas, cerca de uma dúzia delas de tecnologia. O plano presume que esse setor continuará vibrante, o que não passa de uma esperança quando falamos com pessoas como Cherniak, da CHI Software. Ele acha que sua empresa está prestes a perder vários contratos novos no futuro. • TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

“Essas empresas são pagas em dólares e euros. E, sem isso, não seremos capazes de pagar pelo combustíve­l para o Exército ou por remédios, e nossa moeda depreciará e haverá inflação”

Hlib Vishlinski

Diretor do Centro para Estratégia Econômica

“Você tem um período curto de empatia dos clientes, que depois passa. Nesse ponto, a questão é: você é capaz ou não de entregar?”

Yurii Adamchuk

Diretor de empresa de TI

“A melhor maneira de tirar a cabeça dessas emoções negativas é trabalhand­o”

Nillia Shevchenko

Gerente na EPAM Systems

A corrupção vem diminuindo na Ucrânia à medida que as empresas concorrem no mercado internacio­nal

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Ateliê da Anoeses, marca de lingeries em centro de inovação de Ivano-frankivsk
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EMILE DUCKE/THE NEW YORK TIMES-29/6/2022

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