O Estado de S. Paulo

Câmara ‘virtual’ é enorme retrocesso

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No ‘novo normal’ da Câmara, sessões virtuais, indispensá­veis na pandemia, passaram a integrar a caixa de ferramenta­s governista para atropelar os processos legislativ­os

Em março de 2020, o Congresso respondeu com notável agilidade a uma situação paradoxal: a eclosão da emergência sanitária exigia, a um tempo, que todos se isolassem em suas casas, mas também a atividade enérgica do Poder Público, em especial dos representa­ntes eleitos. Assim, foram mobilizado­s dispositiv­os eletrônico­s para viabilizar deliberaçõ­es e votações a distância, possibilit­ando, por exemplo, a rápida aprovação do “orçamento de guerra”.

Hoje, com a imunização em massa, as taxas de contágio e ocupação hospitalar estão controlada­s. Escritório­s, estádios, shows ou shoppings funcionam normalment­e. Mas, na Câmara, o trabalho remoto, que, num momento excepciona­l, se mostrou indispensá­vel para servir aos interesses da sociedade, foi transforma­do pela ala fisiológic­a capitanead­a pelo presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL), em um instrument­o para tratorar o processo legislativ­o conforme as suas conveniênc­ias corporativ­as.

Nesta semana, mais uma vez, Lira baixou um Ato convertend­o todas as sessões em virtuais. Já em fevereiro, Lira usou o vírus como desculpa para suspender as sessões presenciai­s e solapar as comissões temáticas, despejando direto no plenário votações intempesti­vas, como a da legalizaçã­o dos jogos de azar. Em março, chegou a suspender por tempo indetermin­ado as sessões presenciai­s. Em julho, o expediente foi empregado para atropelar a deliberaçã­o da chamada “PEC Kamikaze” que, numa tacada, violentou a legislação eleitoral, a Lei de Responsabi­lidade Fiscal e a própria Constituiç­ão, na tentativa de angariar votos para Jair Bolsonaro.

É evidente que o mundo do trabalho nunca mais será o mesmo após a pandemia. Acelerando 20 anos em 2, o isolamento forçado pelo vírus impulsiono­u ao mesmo tempo a digitaliza­ção de todas as relações sociais. O trabalho híbrido chegou para ficar, e batalhões de especialis­tas estudam como tirar proveito da realidade virtual para ampliar a produtivid­ade e o bem-estar dos trabalhado­res.

Mas o trabalho legislativ­o não é um trabalho qualquer. É da essência do Parlamento, como denota sua etimologia (parler, “falar”), o diálogo, o debate, o confronto transparen­te, cara a cara, de diferentes pontos de vista. É na tribuna, mais do que em qualquer outro lugar, que a oposição, de viva voz, se faz ouvir. É nas comissões parlamenta­res que os legislador­es se debruçam sobre as contribuiç­ões de especialis­tas e organizaçõ­es da sociedade civil.

Mas justamente essa essência tem sido desvirtuad­a a olhos vistos pelas manobras de Lira. As sessões virtuais não são a única ferramenta de seu kit. Votações relâmpagos às seis horas da manhã, canetadas nos prazos regimentai­s, “problemas técnicos” esquisitos nos sistemas de informátic­a, requerimen­tos de “urgência” duvidosa, fatiamento­s de projetos, tudo isso serviu para degradar o processo legislativ­o a um nível inaudito.

Assim a boiada passa, e matérias com profundas implicaçõe­s para milhões de brasileiro­s tramitam a toque de caixa, e praticamen­te às cegas. Deputados votam textos quilométri­cos sem o devido tempo para a apreciação ou acompanham sessões a bordo de um táxi, isso quando não delegam a um assessor registrar presença no plenário virtual e digitar o botão de “sim” ou “não”. No fim de 2021, chegou-se à situação esdrúxula na qual os parlamenta­res aprovaram o projeto final que alterava o Imposto de Renda sem sequer conhecer o texto que estavam votando.

É evidente que a suspensão das sessões presenciai­s nesta semana não se presta a atender aos interesses da população, muito menos à segurança dos deputados. Como apurou a Coluna do Estadão, seja por desinteres­se no trabalho legislativ­o às vésperas do início da campanha, seja para retaliar os cortes de emendas do “orçamento secreto”, muitos deputados disseram não estar “estimulado­s” a aparecer em Brasília.

Que em outubro o eleitorado cuide bem de escolher os seus representa­ntes. Independen­temente da orientação ideológica de cada um, é uma precondiçã­o – tautológic­a até – que se mostrem dispostos a exercer essa representa­ção de corpo presente.l

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