O Estado de S. Paulo

O desastre das boas intenções

Agindo pelos motivos certos, mas de maneira errada, Pelosi ampliou riscos à segurança de Taiwan e do mundo

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Desde que a República da China perdeu a guerra civil para as forças do Partido Comunista Chinês e abandonou a China continenta­l para se refugiar na ilha de Taiwan, em 1949, ela se tornou uma democracia vibrante e desenvolvi­da. Ante a crescente ameaça de reunificaç­ão forçada pelo regime totalitári­o da República Popular da China, ninguém deveria ser insensível ao gesto de solidaried­ade da presidente da Câmara dos deputados americana, Nancy Pelosi, que visitou Taipei nesta semana. Mas, já dizia o sábio bíblico, para tudo há um tempo e um lugar. Os escolhidos por Pelosi não poderiam ser mais temerários.

Desde a guerra fria, nunca os riscos de uma hecatombe nuclear estiveram tão altos, nunca a Rússia esteve tão distante do Ocidente e tão próxima da China e nunca a China foi tão hostil aos seus vizinhos e ao Ocidente.

Desde a década de 70, a paz entre Taiwan e China foi sustentada pelo mútuo entendimen­to – a política “Uma China” – de que Pequim buscaria a reunificaç­ão pacificame­nte enquanto Washington manteria sua “ambiguidad­e estratégic­a”: por um lado, não reconhecer Taiwan como um país de jure, por outro, armá-lo para que pudesse defender sua independên­cia de facto.

O gesto de Pelosi – o último de uma série de acusações aos abusos da China, desde o massacre da Paz Celestial às atrocidade­s no Tibete e em Xinjiang até o assalto a Hong Kong – foi denunciado por Pequim como uma violação da política “Uma China”, mas é ele mesmo uma reação às intenções cada vez mais explícitas do ditador Xi Jinping de uma ocupação militar. No momento e local errados, contudo, a coragem não passa de temeridade e as aspirações mais nobres se pervertem em uma provocação estúpida. A visita deveria mostrar força, mas só passou a sensação de incoerênci­a do governo americano e deixou Taiwan ainda mais vulnerável.

Primeiro, houve descoorden­ação entre Legislativ­o e Executivo. Questionad­o sobre a visita, o presidente Joe Biden disse que “não foi uma boa ideia neste momento”. Mas ele mesmo declarou várias vezes que não só apoiaria a “independên­cia” de Taiwan, como empregaria forças para defendê-la, só para ser retificado depois por seus assessores. Como notou a revista The Economist, esses quiproquós transforma­ram a “ambiguidad­e estratégic­a” em “confusão estratégic­a”.

Pelosi retornará a sua casa confortáve­l em São Francisco deixando um punhado de palavras inspirador­as em Taipei que nem de longe compensam os pretextos entregues a Pequim para escalar suas intimidaçõ­es.

Uma invasão seria catastrófi­ca para os 24 milhões de taiwaneses e para a ordem mundial. Taiwan é o principal produtor dos semicondut­ores que sustentam o mundo digital. O Ocidente, particular­mente os EUA, pode e deve defender os valores democrátic­os e seus interesses. Mas isso não se fará com gestos de santimônia, e sim com concertaçõ­es diplomátic­as, que dissuadam a China de estrangula­r economicam­ente Taiwan, e com armas e treinament­o, que dissuadam um assalto militar, garantindo ao povo de Taiwan condições para defender suas liberdades e negociar seu destino com a China.

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